Entrevista com o historiador Vítor Serrão

“Sintra é a maior contribuição portuguesa para a definição valorativa do ‘unicum’”

VITOR SERRÃO nasceu em Toulouse (França) em Dezembro de 1952. É professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde dirige o centro ARTIS-Instituto de História de Arte. É autor de numerosa bibliografia sobre arte portuguesa do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco, e sobre Teoria da Arte. Foi director da Biblioteca Municipal de Sintra e técnico dos serviços culturais da C.M.S., de 1980 a 1989, preparando então, com José Cardim Ribeiro, o embrião da candidatura de Sintra a Património Mundial.

Como vê o professor a importância de Sintra no imaginário nacional e quais os exemplos mais singulares que poderemos elencar em termos de contributos singulares na história da arte em Portugal?

É inegavelmente destacado o papel de Sintra no imaginário português: a vila, a serra, o conjunto de património natural e edificado, as múltiplas referências arqueológicas, etnográficas e artísticas, formam uma unidade com aura, isto é, um conjunto de sublimidades auráticas (como diria o filósofo Walter Benjamin) que lhe definem o ‘espírito de lugar’. Por alguma razão as fontes literárias e as descrições de viajantes, portuguesas e estrangeiras, desde o século XVI e sobretudo durante o Romantismo, destacam Sintra como uma espécie de paraíso na terra. Não existe outro lugar assim no nosso país: Sintra é a maior contribuição portuguesa para a definição valorativa do ‘unicum’, o espaço onde arte, cultura, vida, natureza e mistério se conjugam em artifícios de encantamento. Onde não falta a sedução das neblinas eternas, das florestas rasgadas pela penedia e dos belíssimos jardins das quintas de veraneio. Ou o impacto da arqueologia romana (com a maior colecção de epigrafia latina em São Miguel de Odrinhas, por exemplo). E as desafogadas paisagens da serra imensa e do litoral de Colares com suas praias e mar bravio. Foram todas essas valências que a UNESCO justamente veio reconhecer ao classificar Sintra e a Serra como Património da Humanidade. 

Como se pode classificar o Palácio da Vila de Sintra, em termos arquitectónicos? Que especificidade tem esse lugar na arquitectura da época?

O Paço realengo é um notável testemunho da arquitectura civil do fim da Idade Média, onde domina a expressão do Gótico, na roupagem naturalista da sua derradeira vertente decorativa, o chamado estilo manuuelino, com as suas influências exóticas e islamizadas. É, por todas essas razões, um dos grandes monumentos civis da arquitectura nacional, fruto e consequência de uma série de campanhas de obras relevantes que sofreu nos reinados de D. João I, de D. Duarte, de D. Manuel e, enfim, de D. João V. O resultado explica a grande riqueza histórico-artística que se atesta pela evolução coerente e consequente das sucessivas campanhas de obras que o foram moldando, decorando e caracterizando ao longo de mais de seis séculos.  

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Há um estilo manuelino em Sintra? Ou o mesmo resulta duma particular adaptação duma moda orientalista resultante dos Descobrimentos?

Na arte sintrense, de facto, a expressão arquitectónica do chamado estilo manuelino tem uma forte expressão, antes de mais no Paço Real (com destaque para a denominada ala manuelina, a nascente, e para a famosa Sala dos Brasões, a poente), mas também em igrejas da vasta zona saloia, como as matrizes de São João das Lampas, de Montelavar e de Terrugem. A adaptação das citadas influências orientalizantes num repertório naturalista, como testemunho das directrizes estéticas da corte de D. Manuel, encontra nesses testemunhos sintrenses um acervo relevante e digno de atenção. Mas não há que esquecer que, mais importante do que o Manuelino, a arte sintrense do século XVI é dominada, sim, pelo tempo do Renascimento, estilo italianizante com vastos testemunhos de alta qualidade (quinta da Penha Verde, palácio dos Ribafria, capela da Ulgueira, convento da Penha Longa, convento do Carmo de Colares, etc).

No plano da azulejaria, que exemplos mais notórios poderemos detectar no espaço público de Sintra?

A história da azulejaria portuguesa, a mais original das nossas artes de decoração, pode ser contada nas suas sempre renovadas linhas de evolução, desde o século XV, pelos exemplos que se encontram em Sintra e na sua região. Desde os azulejos hispano-mouriscos, abundantes no Paço Real, aos frontais de altar e de padronagem seiscentista, patentes em muitas igrejas, à azulejaria de figuração azul e branca da fase barroca (como os azulejos do Mestre P.M.P. na Sala dos Brasões ou os de António de Oliveira Bernardes na capela da quinta da Piedade), aos azulejos de fachada da fase romântica, etc.

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Há património edificado ou móvel em risco sério no concelho de Sintra? Quer dar-nos algum exemplo, e do que pode e deve ser feito para evitar a sua degradação ou desaparecimento?

Sim, o longo trabalho de inventariação e estudo pluridisciplinar que conduziu à classificação da UNESCO (e que tive a honra de integrar, já lá vão trinta anos) impôs certamente regras de conduta e, sobretudo, uma consciência de bem comum de quer todos nos orgulhamos, mas não estancou as ameaças, que decorrem da especulação imobiliária, da pressão construtiva na chamada ‘zona tampão’ e em vastas áreas rurais, e de trabalhos de conservação e restauro que, por esta ou aquela razão, se protelam. Sintra é de tal modo importante à escala do planeta que a defesa do seu património histórico, artístico e natural exige um esforço continuado de responsabilização e vigilância, que me parece não estar a ser feito como se impunha. Há casos de desleixo, de abandono e de negligência, pese tudo o que de relevante se fez já a nível da conservação e restauro de sítios. Cabe à autarquia, às associações culturais e cívicas, às tutelas do Estado democrático, no seu conjunto, impulsionar medidas assertivas que combinem as salvaguarda integral do património sintrense com o progresso desejável e o impacto do turismo, selectivo ou de massas, entendendo essa tarefa como um imperativo nacional.

Quem são, em sua opinião, os pintores, escultores ou artistas, eruditos ou populares, mais relevantes na intervenção no espaço público e privado de Sintra?

A história de Sintra confunde-se com a História da Arte em Portugal e dela constitui um capítulo brilhante. Impossível responder de modo rápido a esta questão, mas é certo que há nomes que não se podem deixar de referir nesse balanço de síntese, como sejam o escultor renascentista Nicolau Chanterene, ou o arquitecto Francisco de Holanda, ou o pintor quinhentista Diogo de Contreiras, ou o azulejista Oliveira Bernardes, ou o Barão de Eschewege, arquitecto do Palácio da Pena, senão o rei-artista D. Fernando II, o príncipe por excelência do Romantismo sintrense – e tantos, tantos outros, ao longo dos séculos, sem esquecer os escritores, de Camões a Ferreira de Castro…

Qual seria, para si, o modelo mais adequado para preservar e recuperar o património de Sintra? Concorda com o atual figurino, repartido entre a Parques de Sintra, a CMS, e a Administração Central?

Uma gestão integrada do Património Histórico, Cultural e Artístico de Sintra, com tónica na preservação física das unidades patrimoniais (construídas ou naturais), renovando sempre o seu estudo integrado e a sua salvaguarda e re-conhecimento, e gerindo criteriosamente o fluxo turístico e o impacto da pressão urbanística, parece-me ser o modelo adequado a adoptar.

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