Raul Lino, Francisco Costa e uma Casa, por Eugénio Montoito

A forma de ver um espaço proporcionador de momentos contemplativos, penserosos e criativos com um novo destino  

Quando esta casa, feita mesmo em frente da serra verde, ainda mal se erguia, e as traves da futura moradia eram belos pinheiros, simplesmente, houve uma tarde, sob um sol ardente, em que o suor em bagas escorria da testa dos pedreiros e fazia da cal e areia uma argamassa quente. Hoje, há paredes contra os vendavais, mas é cá dentro que soltamos ais nos dias mais aflitos ou mais duros. Enquanto gemem temporais lá fora, pagamos nós em lágrimas, agora, a dor incorporada nestes muros.

(Francisco Costa, Última Colheita, 1987)

Nos primeiros dias de Abril assisti, no Palácio de Seteais, a um conjunto de conferências integradas no Colóquio Nacional sobre Raul Lino em Sintra, iniciativa da responsabilidade científica do IADE (tendo apoio logístico do Hotel Tivoli Palácio de Seteais, da Câmara Municipal de Sintra, da Colares Editora e da Discovery – Culture & Taste).

 
O presente colóquio procurou assinalar os 40 anos do falecimento de Raul Lino e os 100 anos da inauguração da Casa do Cipreste, relançando a discussão sobre as suas distintas valências no campo das artes e na sua intervenção como arquitecto.
 
No seguimento desta oportunidade comemorativa e no aproveitamento das palavras e dos discursos ouvidos sobre estes registos, estas memórias e estes patrimónios, veio-me à lembrança um edifício desenhado por Raul Lino que, actualmente, pertence à Câmara Municipal de Sintra e que está fechado e sem utilização. Falo da casa do escritor e ensaísta sintrense Francisco Costa (1900-1988), localizada na Rua Sacadura Cabral, perto do Largo do Morais.
A obra de Raul Lino possuirá sempre uma dualidade antagónica nos fundamentos identificadores do seu traço e da sua filosofia. Para uns, estamos perante um espirito conservador e tradicionalista, enquanto, para outros, o epiteto será de revolucionário e ousado. No entanto, julgo que, em ambas as leituras, Raul Lino será sempre considerado um dos grandes arquitectos portugueses do século XX, sendo a sua vasta e ecléctica obra reconhecida como ímpar no panorama arquitectónico nacional. 
 
Esboço Aguarelado de Raul Lino – Casa de Francisco Costa
 
Na observação dos especialistas da nossa História da Arte, a obra de Raul Lino assenta em três postulados interligados e permanentemente consolidados. O primeiro, «num arquétipo culturalista, no qual predomina a ideia de que só o conhecimento do terreno/paisagem sobrevalorizam conceitos e valores tradicionais da pura arquitectura portuguesa». O segundo, num reconhecimento de que estamos perante um registo romântico ruralista, onde Raul Lino vai «procurar a naturalidade, a integração paisagística, a simplicidade, a harmonia decorativa, a estética das proporções, a funcionalidade prática e simbólica das casas alegres e simples que, no seu entender, constituíam a tradição popular nacional, camponesa ou urbana». E, por último, as influências filosóficas e ideológicas recebidas e estruturadas – muito em resultado de uma materialização teórica obtida no seu percurso académico realizado na Alemanha e em Inglaterra –, e, posteriormente, aplicadas nas suas sínteses arquitectónicas em Sintra e em Portugal, no que respeita à sua arquitectura doméstica, paisagística, monumental ou urbana.
 
Os desenhos e os perfis finais, muitos deles aguarelados, enunciam os elementos e as virtudes que, nos seus projectos mais amorosamente concretizados, configuram a sua mítica recriação da “casa portuguesa”. Para Raul Lino, «a arquitectura só ganharia sentido, quer prático quer simbólico, quando organicamente integrada na paisagem natural e na cultura ou no espírito do próprio homem que nela habita», em rejeição absoluta às concepções científicas e racionalizantes da habitação e do espaço, quer fossem exemplos de mau gosto de fin-de-siècle ou de um racionalizante modernismo arquitectónico.
 
Raul Lino encontrou em Francisco Costa um interlocutor de excelência nesta aplicação gramatical de soluções arquitectónicas, equacionadas na base da sensibilidade lírica interpretativa do espírito nacional da época e da contextualização filosofada na leitura da sua alma poética.
 
Esboços de Raul Lino – Casa de Francisco Costa
 
Ora, quando nos abeiramos da janela alpendrada da casa de Francisco Costa, identificamos, de imediato, a clareza da aplicação do conceito do entender e interpretar o “espírito do lugar“, bem como o riscar dos espaços e recantos do projecto, de acordo com as necessidades dos momentos contemplativos, penserosos e criativos do detentor final da obra. Segundo Carlos Manique, em artigo sobre esta casa e os escritos do seu proprietário, houve grande cumplicidade entre o poeta e o arquitecto no percurso da elaboração do projecto, intuindo Raul Lino que o seu desenho iria possibilitar que o escritor, em Diálogos Estéticos expressasse as suas certezas de que, ali, naquele alpendre sobranceiro à serra, preenchida de verdes e neblinas movediças, se podiam escrever romances e reflectir sobre a poesia deles.
 
Na interpretação e leitura de Irene Ribeiro (Arquitectura, Paisagem e Sintra. Raul Lino Romântico), o arquitecto considerava a casa como o espaço privilegiado do homem, visto como um lugar de abrigo e refúgio e de «realização da própria essência humana, quer pela sua dimensão material – a luz, o ar, o isolamento, a comodidade, a solidez, a companhia dos objectos, quer pela dimensão espiritual – condição de intimidade, recolhimento, protecção e hospitalidade, factor de paz, afecto e liberdade
 
Raul Lino não procurou, apenas, promover modelos éticos e estéticos, identificados com a tradição cultural e nacionalista, bem à mentalidade conservadora e individualizante da época, ele pretendeu educar e moralizar o espirito e as sensibilidades sociais para as suas verdades e valores, lidos na aplicação dos materiais, na negação do pastiche proveniente das influências estrangeiradas, na importância atribuída ao jardim e à decoração interior, desenhados e articulados, 4 arquitectonicamente, com elementos considerados tipicamente portugueses: beirais, alpendres, azulejos, cantaria, caiação.

A Casa de Francisco Costa integra-se, perfeitamente nesta leitura, tanto pela sua estrutura arquitectónica modelar, quer pelo seu significado. A par disso, a paisagem envolvente da Sintra que dali se avizinha corresponde ao gosto do desafio ideológico do arquitecto. Deste ponto, também se sentem as forças naturais e desafiantes de «um terreno descontínuo, de relevo muito variado, onde o céu nunca se vê num hemisfério total, com grandes variações de luz e sombra e uma vegetação que funciona como diferentes filtros do olhar», conferindo-lhe, tudo isto, uma aura de encantamento e mistério que vai expressivamente ao encontro do ao arquétipo romântico do arquitecto Raul Lino.

 
Feito este pequeno apontamento, gostava de deixar, também, registado a minha opinião sobre o emprego a dar a este magnifico espaço sem subverter o que autor do projecto e proprietário entendiam e interpretavam por “espírito do lugar” e criando novos acordos entre os espaços e os recantos desenhados no projecto com novas utilizações e necessidades, também elas proporcionadoras de momentos contemplativos, penserosos e criativos. Refiro-me, em concreto, à instalação neste edifício dos serviços do Arquivo Histórico do Município de Sintra que, segundo murmurativos falares, irá sair da sua primitiva, única e actual morada, no Palácio Valenças.
 
Esta opinião de instalar neste espaço o Arquivo Histórico não se resume a um simples exercício académico, analisados que são os factores de ordem prática consentâneos a uma deslocação do Arquivo, julgo que este aproveitamento e, consequente, integração do edifício existente e da área adjacente responde como a solução mais consensual em reposta a três itens: O primeiro, como processo mais enquadrado e digno de Salvaguarda e Promoção do Património Arquivístico Municipal dos suportes de memória dos 860 anos de existência do Concelho de Sintra; O segundo, visto como aproveitamento e requalificação do Património Edificado Municipal com identificação histórica; E, o terceiro, como espaço passível de ser alvo de uma intervenção consentânea com as necessidades especificas de segurança, de funcionamento e de preservação imposta a um Arquivo Municipal.
 
Em suma, a escolha da Casa do Escritor Francisco Costa, como possibilidade de instalação do Arquivo Histórico, justifica-se, acima de tudo, na oportunidade de se utilizar propriedade municipal e, paralelamente, no possuir uma dualidade funcional que qualquer Arquivo Histórico deve ter em linha de conta, através da observação das necessidades dos utilizadores e das condições de acesso aos documentos. Um edifício para Arquivo não pode estar fisicamente inacessível aos utilizadores, sejam eles cidadãos anónimos que procuram um documento probatório, ou estudantes e investigadores que pesquisam informação histórica ou, até, funcionários da autarquia que necessitam do registo administrativo. Deste modo, considero que a localização escolhida satisfaz, plenamente, esta premissa, pois coloca o Arquivo Histórico suficientemente perto dos organismos e com uma boa acessibilidade à população. Considero, ainda, que os três pisos do edifício respondem às necessidades de instalação do Arquivo Histórico, na perspectiva de utilização arquitectónica requalificada, observadas que são as três áreas funcionais do serviço: Áreas de Tratamento Técnico e Classificação, Áreas de Depósitos e Recepção Documental e, por último, Áreas de Circulação Pública e de Consulta.
 
As particularidades e a dimensão do actual Arquivo Histórico, instalado no Palácio Valenças, no que respeita aos dois circuitos de circulação documental e de circulação do público, encontram paralelismos nas áreas limpas e nos espaços da Casa. Aliás quem conheceu a casa por dentro, com as características mobiliadas do seu antigo proprietário, consegue perceber que a única alteração será na altura do vão de prateleira, porque onde, antes, havia estantes para livros, agora poderá passar a haver estantes para caixas de arquivo, mantendo-se a função do destino dos seus espaços – obviamente, impondo um conjunto de requisitos específicos, consoante a sua utilização, mas nada mais do que isso. Na cave do edifício poderão ser instalados os depósitos, bastando, para isso, criar as condições de impermeabilidade, arejamento e controle de humidade adequados à segurança e salvaguarda da documentação, enquanto que os locais de trabalho e de consulta pública se distribuirão na observação dos espaços, naquilo que eles em tempos foram, escritórios e salas de estar.
 
Estou totalmente convencido que esta proposta é exequível no seu propósito e na dimensão do seu custo financeiro e, igualmente, imbuído do espirito do lugar e da memória do escritor Francisco Costa, como responsável pela criação do Arquivo Histórico do Município de Sintra e seu primeiro arquivista.
Share Button
Scroll to Top