15 de Outubro, com Liberto Cruz na Biblioteca de Sintra

Decorreu dia 15 de Outubro na Biblioteca de Sintra o lançamento em Sintra da obra de Liberto Cruz Felicidade na Austrália, com apresentação de Miguel Real, Manuel Brito, da Editorial Estampa, e Fernando Morais Gomes, da Alagamares.

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Com esta obra, Liberto Cruz estreia-se na ficção em catorze passagens de uma vivência em S. Pedro de Penaferrim, onde nasceu e viveu. Histórias de um tempo outro em que a «felicidade», agora descrita, se esvai numa estranha lonjura como se em um outro continente ela se tivesse desenrolado. Todavia, a presença constante desse habitado pequeno mundo, simultaneamente tão natural, tão buliçoso e tão pachorrento, perdurava na memória de quem o sentiu e observou e exigia-lhe um testemunho que, ao longo dos anos, se foi tornando quase obsessivo. Não é a pequena história desta povoação que se pretende evocar nem, tão-pouco, se deseja transmitir com rigor essa época situada entre os anos 40 e 75 do século passado. O que o autor procurou, com humor e malícia, num tom por vezes brejeiro, foi recordar esse tempo português, veladamente permissivo, que procurava, a todo custo, evitar o escândalo público,  um tempo em que Deus “era uma espécie de Salazar em ponto grande”.

E nessas histórias desfilam personagens dum pequeno mundo realista como o Sete Sopas, a Deolinda, o Safio Enjoado, o Jonas Marquês ou o Vasco Pé Curto, todas sumidas na noite dum Portuga desaparecido e aqui designado como o paroquial Estado Independente de Penaferrim, onde a “austrália” é uma imaginária terra prometida onde se celebra o companheirismo e a amizade na pena de Liberto Cruz, por Miguel Real designado como “orador da escrita”, e que com esta obra se  embrenha seriamente na “realidade da ficção”.

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Para Miguel Real Felicidade na Austrália é um título enganador, já que toda acção decorre em Sintra. Partindo de um verso de Álvaro Campos, o termo “Austrália” assume no romance a ideia atractora de “terra encantada”, lugar onde se pode ser feliz ou onde se foi feliz. Neste caso, a felicidade inocente da infância e da juventude do autor passadas em S. Pedro de Penaferrim, terra de sua naturalidade. Localidade marcada por vastas quintas nobiliárquicas, que, a partir da década de 1950, foram mudando de proprietário, compradas por empresários enriquecidos, é também habitada por uma comunidade popular, entranhadamente sintrense, em compita com as restantes freguesias do concelho, nomeadamente S. Martinho. Felicidade na Austrália narra a história colectiva deste grupo popular, “simultaneamente tão natural, tão buliçoso e tão pachorrento” (texto de contracapa), por via de figuras típicas, até pitorescas (mas não por via de tipos sociais, como o neo-realismo descrevia as camadas populares), um pouco ao modo de José Rodrigues-Miguéis, como, por exemplo no seu conto “Saudades para D. Genciana”.

Desenhando o microcosmo da vida colectiva de uma freguesia de Sintra num registo literário realista, Liberto Cruz, porém, alcança o desiderato de nos dar – preto no branco, como em antiga fotografia – o macrocosmo dos elementos fundamentais da vivência popular em Portugal de meados do século XX. Felicidade na Austrália constitui-se, assim, como um verdadeiro documentário de um Portugal pré-europeu e pré-moderno, carregado de paroquialismo católico, atravessado de pequenas quezílias entre famílias e de limitadas invejas individuais. Era assim Portugal, como os filmes de António Silva, Vasco Santana e Beatriz Costa ainda hoje nos evidenciam e que o romance de Liberto Cruz tão bem ilustra. Neste sentido, Felicidade na Austrália constitui-se, para além do seu timbre literário, e porventura devido ao seu realismo, como um verdadeiro documentário ficcionado (ou uma ficção documentada) de um tempo português. Um caso estético precioso, justamente para Sintra, onde decorre a acção, mas também, enquanto testemunho pessoal, para a história portuguesa do século XX.

Felicidade na Austrália é tecido de humor (um humor permanente que atravessa todas as 14 histórias ou estórias), de relações sociais inquinadas pela concorrência entre famílias, de invejas pessoais e de desejo, por parte dos jovens, de rasgarem novos horizontes. Dos romances de Júlio Diniz, o autor apreendeu a semântica natural das palavras, todas com um sentido social preciso; de Ruben A., o emaranhado complexo da mente humana, o labirinto da consciência que não se conforma com a realidade e o contínuo desejo de partida (em parte também fruto da experiência de vida de Liberto Cruz , que, após a sua participação na Guerra do Ultramar, partiu para terras de França onde foi professor e conselheiro cultural). Do estilo da sua poesia, guarda o autor, singularmente, a ausência neste romance de retórica, de eloquência, de um estilo florido e pomposo, como costumam ser as primeiras obras. Muito pelo contrário, o estilo realista, como referimos, marca indubitavelmente a composição deste romance, acompanhada de um humor por vezes sarcástico, por vezes jocoso.

Com este estilo e com a inspiração das vivências da infância e da juventude, Liberto Cruz criou (recriou?) um conjunto de personagens que, funcionando por si, cada uma com a sua história e a sua marca social singular, compõem um fresco de personalidades, emoções e acontecimentos que, no seu todo, como referimos, constitui uma brilhante síntese ficcional da mentalidade do Estado Novo, inclusivamente o episódio de “Os falsos pides”, já decorrido em 1974..

Comunidade fechada em si mesma, personalidades tornadas personagens por via da caricatura, do sarcasmo, não existem personagens extraordinárias, superiores às demais, decorrendo a acção em curtas enredos suspensivos, mas sempre solucionados: – por que na família Matias os homens tinham o nome próprio de Júlio? (“Júlio petróleo”); a rivalidade na freguesia entre anglófonos e germanófilos (“Adolfo versus Bife”) ao longo da Segunda Guerra Mundial; os interesses casamenteiros (“Os gémeos”); as relações amorosas e os filhos bastardos (É a vida”); os rituais das comezainas entre amigos, mesmo com desnível social (“A última ceia”); as viúvas precoces (“Deolinda”); a rivalidade entre as lojas e a megalomania (“A casa de pasto”); os ciúmes (“Dois cavalos e um boi”). “O moço do cego”, “A condessa”, “sete sopas” e “os falsos pides” serão, porventura, as melhores histórias.

Como o explicita com lucidez o texto da contracapa, certamente escrito pelo autor, que – recorde-se – é igualmente crítico literário, “a conivência e o desaforo, o medo e a má-língua, o oportunismo e a resignação, a esperteza e a inveja, o sonho e a represália, a pacatez e a fúria, a pilhéria e a sageza, o comodismo e o atrevimento confrontam-se amiúde [neste romance] através da reposição de coisas e de gentes, em que não se deve esquecer que a verdade da ficção deverá sempre ser tomada em conta”.

Uma belíssima estreia no campo do romance aos 79 anos”.

SOBRE O AUTOR

Liberto Cruz nasceu em Sintra, em 1935, e licenciou-se em Filologia Românica, em 1959, na Faculdade de Letras de Lisboa, exercendo a função de professor do ensino secundário até 1966. Entre 1967 e 1968 lecionou Literatura Portuguesa na Universidade de Alta Bretanha, em Rennes, onde, em 1969, criou a cadeira de Literatura Angolana. Entre 1971 e 1973, dirigiu na Universidade de Vincennes, Paris, um curso de Literatura Angolana. Em 1975, foi nomeado conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris, cargo que ocupou até 1988, data a partir da qual assumiu a direção da Fundação Oriente. Poeta, romancista, ensaísta, traduziu também Samuel Beckett, Blaise Cendrars, Jean Husson, Robert Pinget, Le Clézio, Duras e Sade. Em 1961, fundou a revista literária Sibila; dirigiu, entre 1964 e 1966, a coleção Poesia e Ensaio da Ulisseia e, entre 1965 e 1966, colaborou na rubrica de crítica literária do Jornal de Letras e Artes. Colaborou nas revistas Poesia Experimental (1964-66) e Hidra (1966-69) e, desde 1971, na revista Colóquio-Letras.
As suas primeiras obras poéticas, Momento, 1956, A Tua Palavra, 1958, Névoa ou Sintaxe, 1959, e Itinerário, 1962, vindas à luz na viragem da década de 50 para a década de 60, refletem um momento de transição na poesia portuguesa, pelo reequacionamento da relação entre a linguagem poética e a realidade. Após as tendências contraditórias de uma poesia de intenção social, na linha do neorrealismo, ou de uma poesia que cultiva a liberdade imaginativa, na senda das experiências surrealistas, assiste-se então a um momento de crescente valorização da linguagem na criação poética, aliada, por vezes, a um experimentalismo, assumido por este autor apenas, e sob o pseudónimo de Álvaro Neto, em Gramática Histórica. Entre essas primeiras obras e Distância (1976) ou Caderno de Encargos (1994), medeia um percurso marcado pela busca de uma cada vez maior contenção imagística e metafórica, mas também discursiva, num itinerário de conquista de uma “sabedoria apaziguadora” (MARTINHO, Fernando J. B., pref. a Caderno de Encargos, 1994).

Sobre a obra poética de Liberto Cruz, ler neste site o artigo da desaparecida Helena Langrouva em

https://www.alagamares.com/a-obra-de-liberto-cruz/

 

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ENTREVISTA A LIBERTO CRUZ NA AGENDA CULTURAL DE SINTRA

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