Passam dia 31 de Março 200 anos da extinção da Inquisição em Portugal, e a esse propósito o historiador Jorge Martins, deu-nos uma entrevista, bem como nos enviou um seu trabalho- abaixo, em PDF- sobre essa nefasta instituição que assombrou Portugal durante 285 anos.
Para aceder ao trabalho integral, leia em baixo: “Memorial Virtual às Vítimas da Inquisição” de Jorge Martins
Entrevista
Quem é o Jorge Martins, enquanto académico e investigador?
Sou um ex-professor de História da Escola Secundária Braamcamp Freire e do Instituto Superior de Ciências Educativas. A investigação histórica coexistiu com o ensino desde 1978, ano em que concluí o bacharelato na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e iniciei a atividade docente. Aposentado desde 2013, ganhei mais tempo para a investigação, para a publicação de estudos e para conferências.
Sou investigador independente. Já estive ligado (ou em vias de) a instituições académicas, mas não correu bem e acho que sou mais livre assim. Hoje, não me vejo a viver sem a investigação e a consequente necessidade da publicação dos estudos que faço, porque é frustrante não dar a conhecê-los.
O tema do judaísmo e das perseguições religiosas têm sido dominantes no seu trabalho. Alguma razão especial, ou mera curiosidade científica?
Aconteceu de forma muito prosaica. Fui aluno do historiador e ex-professor da FLUL João Medina na licenciatura e no mestrado, de que foi meu orientador. Sendo o meu historiador de referência (ainda hoje), desafiou-me em 1998 para fazer doutoramento. Propôs-me dois temas, alternadamente com os dois que eu propus. Perante a rejeição das sugestões um do outro, João Medina disse-me: “Olhe, eu não costumo forçar os meus alunos aos meus temas, mas os judeus…”. Acho que nem o deixei terminar a frase: “É isso!”. Foi uma opção absolutamente inconsciente e contraproducente, pois o meu conhecimento sobre a história dos judeus era praticamente zero e o tema nunca me passara pela cabeça. Os meus amigos judeus costumam dizer: “Pois, pois, estava destinado…”. Vejo isto como um elogio e não como uma premonição, claro.
Outro episódio invulgar aconteceu-me justamente quando me encontrei em Lisboa, em 2004, com a grande historiadora brasileira da Inquisição Anita Novinsky, para falarmos do prefácio que viria a fazer para o 3º volume do meu livro “Portugal e os Judeus”. A certa altura, disse-me qualquer coisa como: “O Jorge vai ser historiador da Inquisição!”. Como estava muito longe de me sentir atraído por esse tema específico, ri-me para dentro, por respeito, e não lhe dei importância. Seis anos depois, em 2010, a pretexto de uma ligação que estabeleci, relacionada com a presença dos judeus e cristãos-novos no Sabugal, comecei a estudar os processos da Inquisição naquela cidade beirã. A partir daí, passei a dedicar-me aos estudos inquisitoriais de dezenas de concelhos, sobretudo das Beiras. Foi um “bichinho” que ficou.
Como surgiu a Inquisição em Portugal?
A Inquisição foi introduzida em 23 de maio de 1536 através da bula “Cum ad nihil magis”, do papa Paulo III. D. Manuel tinha-a solicitado à Santa Sé, mas sem veemência, pelo que caiu (ou deixou-a cair) no esquecimento. Foi D. João III quem a “comprou”, através da corrupção papal ativa. Do outro lado, os cristãos-novos fizeram o mesmo para que não fosse introduzida no nosso país, como tinha acontecido em Espanha em 1478. Até porque, após a expulsão dos judeus de Espanha, em 1492, dezenas de milhares deles vieram acolher-se em Portugal.
Inesperadamente, D. Manuel, pretendendo casar com a filha dos reis Fernando e Isabel de Espanha, por ambições políticas sobre a coroa espanhola, foi forçado a decretar a expulsão dos judeus de Portugal em 1496. Mas D. Manuel não os deixou sair e batizou-os à força no ano seguinte, enquanto os “Reis Católicos” deixaram sair os judeus que tinham acabado de expulsar, cumprindo o decreto de Alhambra, de 31 de março (de 1492), no que viria a ser, ironicamente, o dia da extinção da Inquisição em Portugal, no ano de 1821, de que agora se celebra o 200º aniversário. E assim nasceram em Portugal os cristãos-novos.
A Inquisição foi introduzida no nosso país para perseguir, espoliar dos seus bens e castigar os cristãos-novos forçados, numa hipócrita atitude régia e clerical, que bem sabiam que os judeus não deixariam de o ser por decreto. Em consequência, os criptojudeus, mantinham as práticas judaicas possíveis na privacidade de suas casas, enquanto procuravam aparentar ser verdadeiros cristãos em público, “por cumprimento do mundo”, isto é, para afastar as suspeitas dos cristãos-velhos, indo à Igreja e praticando todas as “obras de cristãos”.
E Sintra, fez-se sentir de forma aguda a sua influência no concelho?
Sintra não foi das terras mais assoladas pelo longo braço da Inquisição, que chegava às aldeias mais recônditas do reino e do império. Em todo o caso, sabemos da existência duma trintena de naturais ou/e moradores no concelho, entre os quais uma dúzia referente a cristãos-novos acusados de práticas judaicas. Destes, destacam-se pelos piores motivos a família Mesas, de que foram condenadas quatro pessoas: Manuel de Mesas Lemos, que foi queimado em auto-de-fé em 1654; sua mulher, Joana de Mesas, condenada a cárcere e hábito penitencial (sambenito) no mesmo auto-de-fé; seus filhos João Rodrigues Lourenço, com a mesma sentença da mãe, em 1656, e Manuel de Mesas Lemos, com o mesmo destino da fogueira que teve o pai, em 1658.
Imagine-se como se terá sentido Joana de Mesas, enquanto desfilava no auto-de-fé de 11 de outubro de 1654, ao ver o seu marido com o seu retrato envolto em chamas desenhado no sambenito que vestia, sinal de que iria ser executado na fogueira nesse dia. E como é possível a uma mãe assistir à agonia de seu filho, ao vê-lo ser queimado no auto-de-fé de 15 de dezembro de 1658? E tudo isto por acusação de não ser o cristão que a Inquisição postulava.
Conte-nos um pouco da presença dos judeus em Sintra. Quem eram, e o que faziam?
Também do que se conhece sobre a comunidade judaica (medieval) de Sintra, não seria muito numerosa. Aliás, a maior parte das judiarias correspondia a pequenas comunidades que viviam numa única rua. Ficaram-nos desse tempo no centro da vila de Sintra as marcas na toponímia sobre a sua presença: a Rua do Arco do Teixeira, o Beco da Judiaria, as Escadinhas do Teixeira.
Conhecemos melhor, por via dos processos inquisitoriais, quem eram os judaizantes de Sintra. Além dos referidos Mesas, eram os Fernandes, os Gonçalves, os Santiago, os Soares, os Silva. Uns vieram da Chamusca, de Estremoz, de Trancoso; outros foram de Sintra para Lisboa, e só encontrámos dois seguramente naturais e moradores no concelho de Sintra: uma mulher chamada Isabel Fernandes, nascida na Terrugem e moradora em Sintra, com o marido, Duarte Fernandes, de 64 anos de idade, ambos presos em 1543. O outro chamava-se Duarte Gonçalves, sapateiro, que tinha 70 anos quando foi preso em 1542. Este sapateiro sintrense nasceu bem antes do decreto de expulsão, pelo que seria um judeu “batizado em pé”, como se designavam os forçados ao batismo em 1497, portanto um membro da comunidade judaica de Sintra. Quanto ás profissões destes processados, além do referido sapateiro, havia um médico, um rendeiro, um procurador, um mercador, um siseiro e um açougueiro.
E a Inquisição em Sintra, foi particularmente marcante?
Como disse, Sintra não foi dos concelhos mais perseguidos pela Inquisição. Em todo o caso, teve vítimas mortais, o que não aconteceu em alguns concelhos com muitos mais processados. No período de transição entre o batismo forçado (1497) e a introdução da Inquisição (1536) ocorreu, em 1500/1501, um episódio contra cristãos-novos locais que levou à intervenção de D. Manuel. Como a denúncia era de pouca monta, o rei ameaçou os denunciantes (“testemunhas tais e tão leves”) que o não voltassem a fazer em casos como este, pois seriam duramente castigados. Foi mais um sinal da política contraditória do rei que determinou a expulsão dos judeus, mas não os deixou sair, porque precisava dos seus saberes, das suas capacidades, do seu importante papel científico, económico e financeiro.
Vão assinalar-se agora 200 anos da extinção da Inquisição em Portugal. Como foram os seus últimos dias?
Podemos dizer que houve uma Inquisição antes do Marquês de Pombal e outra depois. Com efeito, Sebastião José de Carvalho e Melo esteve na origem de um conjunto de decretos régios que manietou a sua ação: proibiu os autos-de-fé públicos; obrigou, em segredo, as famílias cristãs-velhas proeminentes a casar com cristãos-novos; mandou destruir os róis de fintas, isto é, as listas com os nomes dos cristãos-novos que serviam para os estigmatizar, vedar-lhes algumas profissões e cargos, cobrar-lhes fintas (impostos) especiais e, especialmente, decretou o fim da diferença entre cristãos-novos e cristãos-velhos, em 1773. A partir desta carta de lei, já não se podiam condenar pessoas por práticas judaicas, o que inviabilizava a razão da existência da Inquisição. Foi o início do declínio do “Santo Ofício”, que acabaria por ser extinta em 1821 pelo parlamento liberal recém-criado.
Que marcas deixou na nossa maneira de ser? O medo terá permanecido como fator marcante desses tempos?
Ainda bem que faz essa pergunta. É um tema que venho perseguido desde que concluí o meu doutoramento com uma tese sobre os judeus portugueses. Têm sido vários os sinais sobre um traço marcante da nossa identidade: desde, por exemplo, o cantautor Sérgio Godinho, que fez uma canção (“Só neste país”) em torno daquilo a que chamou a “bipolaridade portuguesa”, até ao filósofo José Gil, que alertou para o nosso “medo de existir”. Na verdade, somos um povo muito oscilante entre a euforia e a depressão, somos os maiores do mundo num dia, para sermos os piores no dia seguinte. Ainda não sabemos quem somos, como escreveu Fernando Pessoa, ou Mário de Sá-Carneiro: “Eu não sou eu nem o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio”.
O medo, a delação, e até a inveja, são muito herdeiras dos quase três séculos de Inquisição (1536-1821). Repare que após a extinção da Inquisição foram poucos os períodos suscetíveis de recuperarmos desse medo, que perdurou em regimes autoritários e que culminou com a ditadura salazar/marcelista até 1974.
Penso que a dupla identidade que os cristãos-novos tiveram de assumir (judeus privados e cristãos públicos), associado ao medo geral imposto pela Inquisição estarão na origem desta busca da nossa identidade, ao contrário da Espanha, que teve uma situação diferente da nossa após a expulsão dos judeus, deixando-os sair e não estimulando, como nós, que os forçámos à conversão católica, este dramático sincretismo de pessoas divididas entre duas religiões, duas culturas, duas identidades, praticando o disfarce identitário durante mais de três séculos.
Como vai a investigação histórica sobre esta temática em Portugal?
Felizmente vai bem melhor do que há 20 anos, quando iniciei os estudos judaicos. Mesmo os estudos inquisitoriais, apesar de ser um tema mal-amado pelos poderes políticos (centrais e locais) e pelos decisores culturais e científicos, e não ser suficientemente estimulado nas nossas universidades, tem vindo a registar um assinalável crescimento do número de investigadores. Contudo, nada que chegue à investigação e às teses académicas que proliferam no Brasil. Lá chegaremos. Por isso, tem especial importância a comemoração do ducentésimo aniversário da extinção da Inquisição em Portugal neste dia 31 de março, como a Rede Cultural de Sintra está a promover.