COMUNICAÇÃO APRESENTADA NO COLÓQUIO DA ALAGAMARES SOBRE OS CEM ANOS DOS HETERÓNIMOS DE PESSOA
SINTRA, 8 DE MARÇO DE 2014
Luís Tavares é licenciado em Filosofia pela UNL. Alguns artigos e traduções em revistas e online: “Comunicação e Sociedade” e “Configurações” (Universidade do Minho); “Comunicação e Linguagens” (UNL); Nova Águia; Site da SLP (Sociedade da Língua Portuguesa). Alguns prefácios e livros de edição de autor e co-autor. Realização de algumas entrevistas em vídeo: Eduardo Lourenço, Fernando Belo, José Trindade Santos, entre outros. Actividade em artes plásticas durante vários anos.
“[…] Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos? […]” ( “Apostila”, Álvaro de Campos)
“Depois de escrever, leio… / Porque escrevi isto? / Onde fui buscar isto? / De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu… / Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta / Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?…”(Álvaro de Campos)
1. Eis uns versos de Álvaro de Campos, onde se inscreve um singular efeito de vaivém entre escrever e descrever: “A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo, / […] / E eu escrevo, estou escrevendo por uma necessidade sem nada.” Esquematizando, poderemos encontrar, como ponto de partida três instâncias, dimensões, planos, graus, esferas ou escalas de escrita nesta passagem. Optamos por agora pelo termo ‘instância’. 1ª instância: a materialidade e corporalidade, pura ou em bruto, do escrever; ou seja, passo a citar: “A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo”; 2ª instância: a dimensão do acto de escrita: “E eu escrevo”; 3ª instância: a dimensão da descrição, de um estado de coisas, reportando-se habitualmente ao que é da ordem, do dizer, do conteúdo poético ou literário; cito: “estou escrevendo por uma necessidade sem nada”. Ora, Campos escreve que está a escrever (“escrevo”), e descreve o estar a escrever (“estou escrevendo”). Não se trata somente de meta-poesia ou de meta-poema. Trata-se talvez de repensar a questão do antes e depois da escrita e do texto, e o fora e dentro da escrita e do texto. Repensando também a relação vida e literatura que Pessoa tanto pensou. Claro que é no escriturário ou guarda-livros Bernardo Soares que verificamos mais este trabalho sobre a escrita enquanto tal, um “laboratório poético” (José Gil, Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações), ou ainda, nesta linha, “uma escrita sobre escrita”, ou um “laboratório de escrita” segundo a expressão de Maria Augusta Babo em A Escrita do Livro. Mas este processo estende-se aos heterónimos e ao ortónimo com suas diferenças. No entanto, há um ponto que me parece importante na escrita poética de Pessoa. Para não ir mais longe, por agora, diria que é a função de escriturário profissional de Pessoa que entra em jogo, num jogo de distâncias e proximidades com a sua escrita. Daí também o estranho e inovador aspecto descritivo que se desenrola nos seus textos, tanto em prosa como poéticos, sugerindo uma certa secura e falta de musicalidade, motivo que talvez tenha levado Teixeira de Pascoaes a não o ter compreendido como pleno poeta. Numa entrevista que realizámos com Eduardo Lourenço, a dado passo diz o seguinte: “ Uma das primeiras coisas que me aconteceram foi ficar muito indignado com uma frase numa entrevista ao Pascoaes, onde a dada altura lhe perguntaram: “o que é que pensa do poeta Fernando Pessoa?” E ele respondeu: “mas ele não é poeta.” Não é poeta? Eu fiquei muito indignadíssimo. Mas sei o que ele queria dizer com aquilo.” “[…] Só mais tarde é que eu recuperei para mim o Pascoaes, que considero um dos maiores poetas portugueses de sempre” (1).
2. O que tentamos mostrar neste breve texto é o modo como o dispositivo ‘escrita’, em Campos, põe em jogo estas três instâncias transformando-as. Como é que Campos as põe em jogo e as transforma? Fazendo-as interagir, instalando assim outra dimensão poética. Assim, as três instâncias entram em ressonância entre si, reabrindo, deste modo, um espaço ao imaginário e ao sonho. O trânsito destas três instâncias abre para um fora, para um exterior de que tanto nos fala Fernando Pessoa. No entanto a interioridade não é excluída pelo poeta, antes pelo contrário. É por isso que Álvaro de Campos nos fala da entrada na “substância do mundo”, quando escreve: “Tenho desejo forte, e o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo”. Paradoxalmente, a “substância do mundo” é um certo dentro mas ao mesmo tempo um fora no qual se entra. Ela sugere qualquer coisa de atmosférico. Paradoxalidade extraordinária subvertendo os sentidos de exterioridade e de interioridade, de dentro e de fora, de saída e de entrada. A dimensão literária ganha assim, através de Pessoa e, neste caso, de Álvaro de Campos, uma densidade que falta a muita da literatura e poesia actuais.
3. Ora, estes tempos de escrita, estas gradações temporais de escrita ou da linguagem em Álvaro de Campos, que poderão multiplicar-se e cruzar-se entre si, estruturam-se num certo desfasamento de tempos e do tempo. Este desfasamento, resultante dos vários estratos ou momentos inscritos no processo de escrita, permite, por assim dizer, uma relação de distâncias, tanto no trabalho de escrita como no de leitura, quer dizer, tanto no escritor, como no leitor. Todavia, é através desse desfasamento que Pessoa e neste caso Álvaro de Campos viveu o seu tempo. Precisamente, um certo desfasamento caracteriza-se, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, pelo ser contemporâneo, no seu breve e interessante texto “O que é o contemporâneo?”: “A contemporaneidade é pois uma singular relação com o seu próprio tempo, ao qual se adere tomando contudo suas distâncias, ela [a contemporaneidade] é precisamente a relação ao tempo que a ele adere pela desfasagem e o anacronismo” (p.11). Ora, nos nossos dias, com o imediatismo, a instantaneidade, a aceleração instalada e a velocidade – estranha contradição de presença e ausência – corremos o risco de não viver, em grande parte, o nosso tempo. Não por desfasamento, mas, precisamente por não o pormos em jogo. E a maioria da literatura e da poesia actuais, do nosso ponto de vista, corre também esses riscos, de tão aderente, de tão coincidente, sem desfasagem e anacronismo, de tão demasiadamente facilitada. É que, ser coincidente com seu tempo, no sentido de ser actualizado, não é ser contemporâneo, na perspectiva ainda de Agamben: “Aquele que pertence verdadeiramente ao seu tempo, o verdadeiro contemporâneo, é aquele que não coincide perfeitamente com ele nem adere às suas pretensões, e define-se, neste sentido, como inactual; mas, precisamente por esta razão, precisamente por este intervalo e este anacronismo, ele está mais apto do que os outros a perceber e a atingir o seu tempo” (op.cit., pp. 9-10).
4. É raro haver um espaço e um tempo de gestação para o imaginário literário. Hoje, quase toda a literatura funciona ao ritmo dos seus próprios mercados, como produto já de um certo marketing e indústria numa aceleração correspondente aos mediatismos em torno dela, inevitavelmente contaminados pelo excesso e pela facilidade das imagens, das luzes dos media e das novas tecnologias. Isto não é uma crítica da técnica. É uma tentativa de compreender um dos muitos modos possíveis pelos quais não nos damos conta de como a técnica se dá como controlo. É evidente que isto tem consequências políticas, mas não temo agora competência para analisá-las. É interessante a intuição de Campos quando escreve há quase cem anos, embora noutros contextos: “Eu o abstracto, o projectado no écran.” E também: “De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas / A que chamamos mundo? / A cinematografia das horas representadas / Por actores de convenções e poses determinadas, / O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim? (…)”. Mas imaginar não é só produzir imagens; é potenciar atmosferas, climas, ambiências e, por assim dizer, envolvências, estados de espírito e estados de coisas.
Citemos de novo uma passagem de Agamben no mesmo texto: “Só pode dizer-se contemporâneo aquele que não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue alcançar nelas a parte de sombra, a sua sombria intimidade” (idem, p. 21). Talvez se aproxime desta análise o que Eduardo Lourenço chama, em Pessoa Revisitado, o “Tempo nocturno” de Álvaro de Campos. Campos consegue assim recuar e /ou avançar no seu próprio tempo mediante estes deslocamentos no processo de escrita. Ou então abre caminho a uma reflexão sobre o tempo. Mas é assim que ele adensa o tempo de vivência, permitindo uma forte intensidade do presente, enquanto devir-escrita. Citemos os versos finais do extraordinário poema Tabacaria de Álvaro de Campos: “[…] (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira / Talvez fosse feliz.) / Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. / O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). / Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. / (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) / Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. / Acenou-me adeus, gritei-lhe adeus ó Esteves!, e o universo / Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu. “ Este passo é bem elucidativo sobre o tempo em Campos. O aceno do Esteves e o sorriso do Dono da Tabacaria são gestos que se repetem de alguma maneira desde há muito tempo, e gestos que irão repetir-se. Gestos banais que se descrevem naqueles versos. Como é que eles têm tanta força poética? Pelo facto de estes gestos, na sua banalidade mundana, remeterem virtualmente para um passado e virtualmente para um futuro, que faz com que aquele aceno e aquele sorriso, naquele momento, ganhem uma presencialidade e, ao mesmo tempo, uma intensidade próprias da vida que decorre na cidade de Lisboa. Quanta gente já acenou e sorriu ao longo dos tempos? E quanta gente virá a acenar e a sorrir nos tempos vindouros? Em vez de se viverem esses momentos no seu aparente imediatismo, do que se passa naquele momento, numa primeira e única instância banal, embora isso seja importante, Campos faz desses momentos – numa segunda instância ou mais, naqueles estratos ou instâncias de escrita inscritos no poema – qualquer coisa, por um lado, já de remoto, e, por outro, a vir, que vem. São momentos banais de gente simples e mundana: o Esteves sem metafísica que acena e o Dono da Tabacaria que, eventualmente, vai à porta e sorri com a vida que passa. São esses momentos banais, dizia, que se tornam poéticos. Porque de súbito se tornam essenciais, bem como o Esteves e o Dono da Tabacaria. E na potencial distância como gestos que já aconteceram milhares de vezes, e irão acontecer, esses mesmos gestos, naquele momento, ganham a intensidade que não teriam se fossem vistos no seu mero imediatismo presente que, só por si, se pode tornar ausente. Com efeito, eles são já vistos no seu imediatismo, mas em segunda, terceira instâncias, etc., precisamente, as da escrita mas também da voz ou vozes que com essas instâncias ressoam. E não foi preciso referir a escrita naqueles versos. Todavia, não é por acaso que Campos, nuns versos antes, lhe faz alusão potenciando-a de modo complexo em todo o poema: “Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), / E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. / Semiergo-me enérgico, convencido, humano, / E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. / Acendo o cigarro ao pensar em escrevê-los.”
5. Por outro lado, o fascínio modernista e sensacionista de Campos pelas máquinas e as luzes é um fascínio de constatação e de acompanhamento das coisas que o rodeiam enquanto decorrem e que passam por ele. Veja-se o seu primeiro poema, Ode Triunfal, escrito à máquina, precisamente no dia 8 de Março de 1914, faz hoje precisamente 100 anos. Ode Triunfal, Guardador de Rebanhos do Mestre Caeiro, escrito em papel numa cómoda alta, e Chuva Oblíqua de Pessoa ortónimo, todos escritos nesse dia, bem como a maturação heteronímica de Ricardo Reis. Como se sabe, este processo heteronímico decorreu durante mais tempo do que apenas aquele dia. Na arca de Pessoa encontraram-se muitos rascunhos daqueles poemas com datas anteriores e posteriores a 8 de Março. Contudo, essa data deve ter tido algum significado especial para o poeta. Encontramos a descrição deste processo de escrita com mais detalhes na célebre carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, onde, com efeito, o dia 8 de Março de 1914 é mencionado como o célebre “Dia Triunfal”.
Citemos então os primeiros versos da Ode Triunfal: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / Tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.” O escrever rangendo os dentes, aspecto corporal, pode sugerir um paralelismo com o ruído das teclas da máquina de escrever e o ruído do seu funcionamento enquanto maquinismo. Por outro lado, partindo daí, Campos opera a passagem e a entrada – mas não será ele próprio que passa? – para o amplo espaço da fábrica, mantendo a ponte com o acto de escrever enquanto tal ( o da 2ª instância: “escrevo”), em articulação com os ‘r’ da engrenagem industrial das máquinas (“Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno”). Há uma relação entre as sonoridades de “Escrevo rangendo os dentes” e a repetição dos ‘r’ das máquinas. Assim, dá-se um salto do plano da materialidade e corporalidade do escrever da 1º instância de escrita (o ranger dos dentes e o ruído da máquina de escrever) para o plano da descrição envolvente e exterior das máquinas da fábrica (3ªinstância), com, pelo meio, a instância do escrever, do acto de escrita enquanto tal (“escrevo”) da 2ª instância. Eis que um antes da escrita (uma pré-escrita?), que também a 1ª instância configura enquanto materialidade e corporalidade da mesma, se permuta com um depois da escrita (uma pós-escrita?) que também a 3ª instância configura enquanto descrição, quer dizer, enquanto o que emerge da escrita como dimensão imaginária, (a atmosfera da fábrica). Isto a partir da 2ª instância (“escrevo”), que desdobra aquela permuta entre as outras duas, permitindo a circulação da 1ª para a terceira e vice-versa. Por outro lado, o efeito de transformação e transmutação das três instâncias a partir da sua intercomunicação, é o que abre para um dentro que é também um fora e que constitui o tempo e o espaço poéticos de Álvaro de Campos e mais latamente de Pessoa e dos restantes heterónimos. Eis que entramos numa espécie de labirinto. Mas não será a própria fábrica um grande labirinto? Por outro lado, até que ponto, as múltiplas instâncias da escrita não terão a ver com a génese heteronímica? É uma questão que deixamos em aberto.
6. De outro modo, e sem nos podermos alargar nesta leitura, digamos ainda que há uma proximidade ou analogia entre a escrita e as sensações. Entre as sensações, por exemplo, do “escrevo rangendo os dentes” e o escrever inscrevendo letras, palavras e frases, mas também o teclar da máquina. Quer dizer, pode-se falar da relação das sensações corporais com as sensações da escrita material, precisamente, as sensações do contacto e dos sons das teclas da máquina, escrevendo. Partindo desta primeira articulação escrita/sensações pode encontrar-se uma outra. É a da relação entre a escrita da descrição da fábrica e as sensações, através das engrenagens, do seu ruído e das grandes lâmpadas eléctricas, onde Campos tem febre e escreve. Há, portanto, uma proximidade entre os planos e/ou as gradações da escrita e os planos e/ou as gradações das sensações. Por isso, na leitura, quando já nos deslocamos no plano das escritas, já nos deslocamos no plano das sensações.
Ainda que Álvaro de Campos seja como que arrebatado pelo mundo moderno e futurista das máquinas, ele não deixa de fruir esse mundo como uma envolvência que ele próprio presencia. Digamos, num estofo de sensações. Como se as sensações fossem múltiplas bolhas de oxigénio vitais e variadas. Em Campos, diríamos que a sensação é uma espécie de acolchoamento espacial, temporal e corporal conferindo concretude à vida e ao mesmo tempo um solo para o sonho. O sensacionismo em Campos e Caeiro confere um espaço e um tempo, sem perder de vista o processo de escrita. Onde a voz e as vozes ressoam no poema, para além dele e através dele, como na fábrica e nos grandes espaços, por exemplo os da Ode Marítima, ou do belíssimo poema sobre Sintra que começa assim: “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, / Ao luar e ao sonho, na estrada deserta (…).” Dir-se-ia haver constatação das próprias sensações enquanto tais, mas enquanto sensações sucedendo-se; sendo esta constatação correlativa da consciência e um ponto de partida para o que Pessoa designa a “abstracção das sensações”. Pois a “consciência realiza a abstracção das sensações”, como observa José Gil analisando alguns textos de Pessoa sobre o sensacionismo no seu livro anteriormente citado.
7. Porque falamos de constatação? Leia-se uma passagem de um texto de Pessoa intitulado “Princípios do Sensacionismo” em Páginas de Literatura e Estética, com a organização de António Quadros: “O sensacionismo afirma, primeiro, o princípio da primordialidade da sensação – que a sensação é a única realidade para nós. Partindo de aí, o sensacionismo nota as duas espécies de sensações que podemos ter – as sensações aparentemente vindas do exterior, e as sensações aparentemente vindas do interior. E constata que há uma terceira ordem de sensações resultantes do trabalho mental – as sensações do abstracto.”
Perguntando qual o fim da arte, o sensacionismo constata que ele não pode ser a organização das sensações do exterior, porque esse é o fim da ciência; nem a organização das sensações vindas do interior, porque esse é o fim da filosofia; mas sim, portanto, a organização das sensações do abstracto” (Itálicos nossos). Diríamos que se trata do tal estofo de sensações que referimos, ou, se quisermos, uma contextura de espaços e de tempos constituindo um mundo. Seria interessante estabelecer aqui um paralelismo e análise com as palavras de Buda, quando fala da “contemplação das sensações nas sensações” na “Atenção à respiração” (ânâpânasati). Mas esta proximidade será certamente mais notória em Caeiro, o seu Mestre (2)
8. Não é por acaso que Campos emprega frequentemente as palavras ‘abstracto’, ‘abstracção’, etc. Por exemplo, passo a citar: “Não. Cansaço porquê? É uma sensação abstracta da minha vida concreta.” Ou, por exemplo: “Tenho a boca seca, abstracta” (3). Porque, apesar de tudo, escrever e descrever esses estados de coisas e estados de espírito, permite uma compreensão e uma distância onde esses mesmos estados readquirem a sua sombra, um jogo de sombras e de luz, qualquer coisa de uma escrita de outra ordem, num imenso espaço-tempo poético onde, por exemplo, a fábrica na Ode Triunfal ou os grandes espaços da Ode Marítima e de Sintra se tornam de certa maneira numa espécie de nova e outra caverna que já não a de Platão.
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*Texto com ligeiros acrescentos lido na comunicação feita no colóquio realizado na Biblioteca Municipal de Sintra – Casa Mantero (8 de Março de 2014), sobre “O Dia Triunfal” de Fernando Pessoa (8 de Março de 1914).
Notas:
(1) Vj. entrevista em: http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=entrevista+a+eduardo+louren%C3%A7o&updated-max=2012-02-25T15:34:00-08:00&max-results=20&start=3&by-date=false
Vídeo da entrevista, as condições acústicas não são as melhores e ainda não foram colocadas legendas: https://www.youtube.com/watch?v=ruCmouRIzFM
A propósito da eventual ‘secura’ que referimos, leia-se Alain Badiou: “Mas devemos ser sensíveis, na obra completa de Pessoa, a um materialismo poético bastante particular. Se bem que seja um grande mestre da imagem surpreendente, este poeta reconhece-se à primeira leitura numa espécie de nitidez quase seca do dizer poético. É, aliás, por isso, que ele consegue integrar na própria sedução poética, uma dose excepcional de abstracção.”
(2) “E quando o monge, ao inspirar e expirar, se exercita sentindo gozo, e se exercita sentindo felicidade, e se exercita percebendo a actividade da mente, e se exercita acalmando a actividade da mente, ao exercitar-se deste modo cultiva a contemplação das sensações nas sensações” (Nyânatiloka Mahâthera, La Palabra del Buda).
(3) Citemos o poema: “Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância./Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio./Falem pouco, devagar,/Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento./O que quis? Tenho as mãos vazias,/Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstracta./O que vivi? Era tão bom dormir!”
Referências bibliográficas:
I
Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Poesias, Introdução, organização e bibliografia de António Quadros, Europa-América, 1986.
Fernando Pessoa, Obra em Prosa, Páginas sobre Literatura e Estética, org. António Quadros, Europa-América, 1986.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, recolha e transcrição Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, prefácio e org. Jacinto do Prado Coelho, Ática, 1982.
II
Alain Badiou, Meditações Filosóficas, Pequeno Manual de Inestética, Volume II, trad. Joana Chaves, Ed. Instituto Piaget, 1999.
Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado, Lisboa, Gradiva, 2003.
Giorgio Agamben, Qu’est-ce que le contemporain?, trad. Maxime Rovere, Rivages, 2008.
José Gil, Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Lisboa, Relógio D’Água,Maria Maria Augusta Babo, A Escrita do Livro, Lisboa, Vega, col. Passagens, 1993.
Nyânatiloka Mahâthera, La Palabra del Buda, trad. Amadeo Solé-Leris, Barcelona, Ediciones Indigo, 1991.