Vinte anos depois da classificação de Sintra como Património da Humanidade, muito foi feito e muito está ainda por fazer na revitalização do património herdado e para a sua fruição por todos, nacionais e estrangeiros.
Se há que elogiar a recuperação de património e o restauro que rasgados e merecidos elogios tem merecido de reputadas organizações internacionais, há porém que atender às limitações que a política de preços para acesso aos parques e monumentos ainda suscita. Se é certo haver uma política permissiva quanto ao acesso dos munícipes de Sintra aos domingos de manhã, tal iniciativa, sendo meritória, tem-se revelado contudo insuficiente, tendo em vista a plena fruição pelos residentes dos bens culturais Património da Humanidade de que Sintra é depositária, e a dificuldade de muitos agregados familiares, jovens, sobretudo, de conhecer a nossa riqueza monumental.
É sabido serem os monumentos nacionais visitados em maior número por estrangeiros, os quais representaram em 2012 85% das entradas, tendo, igualmente segundo números de 2012 referentes ao todo nacional, 69% dos visitantes pago um ingresso de entrada, enquanto 31% entrou de forma gratuita, e sendo que 19% das entradas gratuitas corresponderam à categoria das visitas aos domingos e feriados.
Contudo, verifica-se que se vem a registar uma diminuição significativa dos visitantes nacionais, derivado do facto de ser exíguo o horário praticado (apenas as manhãs de domingo), quando em muitos outros espaços igualmente com elevados encargos de conservação esse horário cobre períodos mais dilatados. Cite-se o Museu do Prado, em Madrid, que abre gratuitamente de 2ª a sábado das 18h às 20h, e domingos das 17h às 20h, ou o Museu Rainha Sofia, igualmente em Madrid, que abre gratuitamente nas tardes de sábado (das 14h30m às 21h) e domingos de manhã (das 10h às 14h30m).
O direito à fruição cultural está consagrado no artigo 27º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos artigos 13º e 15º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Deve pois envidar-se todos os esforços para que todas as pessoas participem na vida cultural e acedam aos bens culturais, como forma de acesso à educação e à cultura, devendo de acordo com o nº2 do artº 78º da Constituição da República Portuguesa promover-se não só a salvaguarda e a valorização do património cultural, mas torná-lo elemento vivificador da nossa identidade cultural comum, o que só uma plena fruição traduzida no acesso aos locais e sua apreensão valorativa pode garantir. Tal como tem sido política correta “abrir para obras”, igualmente significativo será “abrir para mais pessoas”. Esperemos por boas notícias.
Defender o património, nestes dias dum Portugal cinzento, é estimular a cidadania, e as boas práticas; é pugnar pela educação escolar como plataforma para o seu conhecimento e propagação; é descolonizar a memória de imaginários estafados, acolhendo visões de património, que incluam o imaterial e o das vivências, amanhã seguramente tradições; é resgatar a auto-estima e o “sentimento de nós”, num tempo de cerrar fileiras, e estimular a identidade que constrói a nossa idiossincrasia e peculiar forma de estar no mundo; é lançar pontes e massa crítica, mediar entre o poder público e as comunidades, num trajecto virtuoso que acentue o pathos de ser português, e sê-lo de modo universalista.
Defender o património é zelar por restauros no Palácio de Queluz, repor a estatuária nos Capuchos, repensar o estacionamento e a sinalética nos lugares notáveis, pensar global para agir local, devolver vida e criatividade ao Centro Histórico.
Defender o património é estar atento, ser parceiro com a lealdade de criticar, acompanhar as obras e não depois das obras, chamar a agir e interagir, actuar virtuosamente e não como agente de bloqueio ou de egoístas vaidades, atrás de protagonismos ou da negação pela negação.
Defender o património é revitalizar a Quinta do Relógio e o Hotel Netto, a Quinta D. Diniz e o Rio do Porto, repor a cúpula do Café Paris, intervir na Peninha, e rever o preço dos bilhetes, instalar residências artísticas e artistas sem ser a recibos verdes.
Defender o património é estar atento e ouvir a quando das podas e das plantações, levar os utentes para a gestão das zonas verdes, implementar um Plano Verde pró-activo, obviar arboricídios e deixar crescer as espécies endémicas, monitorizar a pegada ecológica e os ecossistemas milenares, ouvir o som da água nos riachos e o coaxar das rãs, o voo dos morcegos e a seiva das araucárias, a frágil beleza das camélias e a portentosa guarda de honra dos plátanos.
Defender o património é defender o direito ao silêncio dos caminhantes, o cheiro da terra húmida, o pôr do sol na Roca ou o palatal degustar dum travesseiro, dum ramisco ou duma noz dourada de Galamares.
Defender o património é divulgar e proteger os vestígios arqueológicos, identificar os tholos, proteger as antas, recuperar as fontes de água, promover novas classificações e divulgar as mais antigas.
Defender o património é vivê-lo, e com ele conviver, como se cada peça, cada cheiro, cada sabor ou recanto fossem a mais preciosa relíquia deixada pelos nossos avós e que os nossos netos hão-de um dia receber, estranhando primeiro, orgulhando-se depois, aliando a memória à auto-estima, a singularidade com o talento, a polis aos seus moradores.
Defender o património é estar vivo. Contra alguns, algumas vezes, por todos quase sempre. Por Nós. Fundamentalmente.
Viva Sintra Património Mundial!
Notícia no Jornal da Região de 16 de Dezembro de 2015