À conversa com o arquitecto Diogo Lino Pimentel

Licenciado em Arquitetura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL) em 1959, nos últimos anos do curso de arquitetura Diogo Lino Pimentel integrou activamente o Movimento de Renovação de Arte Religiosa (MRAR). Durante o ano de 1960, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, estagiou em Bolonha, no Centro di Studio e Informazione per l’Architettura Sacra, criado pelo Cardeal Lercaro, sob orientação dos arquitetos Giorgio Trebbi e Glauco Gresleri. De regresso a Portugal, em 1961, foi convidado a integrar o recém-criado Secretariado das Novas Igrejas do Patriarcado de Lisboa (SNIP), cuja direção técnica assumiu desde a fundação até ao encerramento em 2014. Foi consultor da Câmara Municipal de Sintra de 1976 até 2010. Foi também membro do Conselho Consultivo do IPPAR. Concentrou a sua atividade de projetista na firma CANON, Lda. que fundou em 1966 com o arquiteto Sebastião Formosinho Sanchez .Recentemente, concedeu-nos uma interessante entrevista

Arquitecto, fale-nos um pouco si, da sua obra e do seu percurso como arquitecto

Sempre tive dificuldade em trabalhar sozinho. Felizmente, encontrei colegas e amigos com quem pude colaborar. Desde logo, nos tempos de formação, participei em movimentos associativos vários, entre os quais destaco o “Movimento de Renovação da Arquitectura Religiosa” ( MRAR ). Depois de estagiar um ano em Bolonha com bolsa da F.C. Gulbenkian, dediquei-me ao recém-criado Secretariado das Novas Igrejas do Patriarcado (SNIP) desde a sua criação em 1961 até à sua descontinuação ( como hoje se diz) em 2014. Também longa e empenhada foi a função de consultoria prestada à C.M. de Sintra (1976 –2010).

O exercício de projectar foi concentrado no atelier  “CANON” criado em 1966 com o arq. Sebastião Formosinho Sanchez, na sequência de termos participado no malogrado concurso de projectos para a Sé de Bragança em 1965 ( 2º classificado). Mais tarde associaram-se à CANON António Flores Ribeiro, Germano Venade e José Luis Zúquete. Este atelier, que viveu até 2010, projectou bastante, construiu não muito, e encheu uma gaveta de projectos que daí não saíram.

Mais pessoais terão sido os projectos para uma pequena igreja em Aldeia Nova, outra na periferia de Évora, e uma casa própria de 150 m2 em Sintra.

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Sintra teve em 1949 um do primeiros planos de urbanização do pós-guerra, o chamado Plano de Groer. Qual a actualidade desse plano e que Sintra permitiu moldar nos últimos 60 anos?

De Groer soube reconhecer a singularidade do carácter da Vila de Sintra e, não menos importante, da sua relação com a realidade e a paisagem envolventes: a serra, a ruralidade e o litoral, pelo lado bom; a ameaça da expansão demográfica e urbana pelo outro lado.

O Plano foi pensado e realizado como um conjunto de princípios e recomendações, que valorizassem o lado bom de Sintra e o resguardassem do outro. A ele se deve em grande parte a permanência de valores que, cerca de 50 anos mais tarde, viriam a justificar a classificação de Património Mundial pela Unesco.

Por ter sido concebido como um plano de princípios, mais do que de intervenção, manteve-se pouco vulnerável à passagem do tempo, ainda que a sua terminologia, visivelmente datada, tenha vindo a desactualizar-se em relação à que hoje muito tecnocraticamente se aplica no planeamento. Uma certa prioridade estatística e uma incomensurável multiplicidade de imperativos administrativos são hoje exigidos ao planeamento em detrimento do tempo e do modo de ver e compreender a cidade e os sítios.

Teria sido impossível, em finais dos anos 40 do século passado, precaver o grau de saturação turística e dos excessos de urbanização e mobilidade que viemos a atingir. Bater recordes de afluência de turistas, é pensar curto, e tanto mais curto quanto disso fizermos monocultura económica. Assistimos a uma fase de grave desertificação da generalidade dos centros históricos. O turismo tem sido um lenitivo mas, além de poluente e saturante é ilusório e volátil

debate_plano_sintra-001Num debate da Alagamares para discutir o Plano de Sintra

Que pensa do modelo de gestão do Centro Histórico, e quais as principais virtualidades e patologias?

A gestão do Centro Histórico tem vindo a tentar cumprir o que dela seria espectável: procurar remédio para as patologias que se foram cristalizando e buscar modos de lhe preservar a saúde. Encontro virtualidades nos discursos e grandes entraves e frustrações na realização. Será apenas questão de prioridades orçamentais que perduram há mais de 50 anos?

“Em Sintra, e não só, há que respeitar o sítio. Há que evitar “gritar” a arquitectura”

Como vê a arquitectura hoje, em geral, e em Sintra, em particular? A arquitectura tem futuro?

A arquitectura tem futuro, como tudo o mais. Estamos talvez a sair de uma fase de arquitectura- espectáculo, com preponderância da forma e volumes exteriores, um pouco em detrimento de outras qualidades próprias da arquitectura. Assistiu-se mesmo ao gosto por certa exibição de desequilíbrios visuais como forma de surpreender o passante. O momento actual será menos propício ao espectáculo e tenderá a dar resposta viável aos actuais modos do viver e habitar e das suas solicitações ou exigências, sem descurar a harmonia da ordem formal e o respeito pelo equilíbrio ambiental. Se não for assim, há qualquer coisa de errado que não será exclusiva da arquitectura. Em Sintra, e não só, há que respeitar o sítio. Há que evitar “gritar” a arquitectura. É questão de sensibilidade, sensatez, boa educação e responsabilidade profissional.

Como pensa que se deveria resolver o problema do trânsito e estacionamento no Centro Histórico? Silo automóvel na Portela- sim ou não?

Negando prioridade avassaladora ao turismo e aceitando que nem tudo pode estar sempre acessível a todos, sob pena de deixar totalmente de ser acessível seja a quem for, por desaparecimento! Ou seja, a solução não depende tanto do ordenamento do trânsito e estacionamento no Centro Histórico, mas mais do estancar o fluxo em torno dele. Sempre tive a noção de que em Sintra o trânsito deva ser condicionado e não condicionante. Há muito que se fala de estacionamentos periféricos e de mini autocarros em circulação permanente como transporte público ágil. Chegou a ser equacionado um teleférico de S. Pedro (estacionamento a sul do 1º de Dezembro) de acesso a Santa Eufémia e Pena como forma de aliviar algum trânsito de atravessamento da Vila Velha. Estacionamento na Portela, claro que sim, com viva recomendação de incentivar o acesso a Sintra por esse lado (Nascente). Haverá certamente soluções eficazes de transporte público urbano ágil e não poluente que possa ligar esses ou outros parques periféricos aos atractivos centrais. Reconheço que tudo isto é fácil de dizer mas difícil de fazer. Razão de sobra para que se estude, discuta e por fim se decida, mas que não se adie!

Concorda com a existência dum organismo semelhante às antigas comissões de arquitectura para emissão de parecer em projectos públicos e privados de valor estético controverso?

Independentemente do valor estético ser controverso ou não, considero justificável e conveniente não restringir a apreciação de projectos sujeitos a licenciamento aos aspectos meramente regulamentares, tanto mais que, nessa matéria, é exigível responsabilidade ao autor do projecto (por norma arquitecto). Os planos e regulamentos nunca são exaustivos. Não dispensam interpretação seriamente fundamentada e susceptível de apreciação para além do estritamente regulamentar. Isso poderá ser realizado por uma comissão ou ser normal atribuição dos serviços e arquitectos camarários, com eventual consulta externa a especialistas quando disso for caso, e sempre em diálogo com os autores do projecto em apreciação. De qualquer modo, alguma colegialidade parece recomendável.

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 O arquitecto é familiar de Raul Lino. Como vê a sua obra, nomeadamente naquilo que alguns designam como “português suave”?

A atribuição de culpas a Raul Lino em matéria de “Português Suave” é um equívoco que julgo hoje ultrapassado. Como sempre acontece, tais equívocos surgem de leituras superficiais e de abusivas generalizações banalizantes. A arquitectura de algum sucesso é frequentemente apropriada e deformada por empreendedores menos habilitados. Foi assim que o livro ”A CASA PORTUGUESA” de 1918 e o  posterior ”CASAS PORTUGUESAS” de 1933 se tornaram “catálogo” inspirativo de construções à maneira de R.L. O “Português Suave” foi simples corruptela do que era proposto por Lino: esquecer os maus estrangeirismos arquitectónicos (mais por serem maus do que por serem estrangeiros) e passar a falar português, se possível correcto e bem falado. Referia-se a raízes culturais e não a uma questão de vocabulário e feitios, por onde se ficou caricaturalmente o “Português Suave”, sem conseguir falar português (suave ou outro).

Que especiais cuidados se devem colocar quando se introduzem elementos novos (arquitetónicos, decorativos, volumétricos) em zonas consolidadas ou de referência histórica?

O principal cuidado a ter é o respeito pelo que está. Para isso há que olhar e ver com olhos de ver. Há que ter discernimento crítico sobre o significado do que se vê. O respeito é isso: dialogar com o que está, ouvindo primeiro e falando depois. Não há receitas e não deve haver limitações à criatividade desde que não se “ofenda” o existente e haja a preocupação de valorizar os sítios. A via da modéstia e discrição será tão válida e admissível como a via de uma maior afirmação ou mesmo de rotura. Certas “dissonâncias” podem ser bom caminho. Certas “consonâncias” não garantem boa integração. A cópia e a mediocridade convencional serão as piores opções. Não haver receitas não significa ausência de exigência ou mesmo de princípios. Em meio urbano consolidado, tal como em meio de paisagem rural, a introdução de novos elementos terá, não só o cuidado de não “desarrumar” os sítios, mas também o cuidado de contribuir para os “arrumar”, como se o novo sempre lá tivesse estado.

O arquitecto Lino Pimentel acompanhou igualmente inúmeros projectos de igrejas e equipamentos religiosos. Que elementos inovadores encontra hoje nas novas igrejas? Há alguma que queira destacar em particular?

As igrejas sempre foram espelho da cultura do seu tempo e testemunho da vivência litúrgica e pastoral de cada época. Os nossos dias não são excepção. Vivem-se tempos de instabilidade, insegurança e mesmo de grande tragédia. A escala das coisas e do que acontece tende para o global. É uma realidade em gestação convulsa. A arquitectura não  deixará de o reflectir. Na Igreja católica o tempo é ainda de “aggiornamento” e de adaptação aos sinais dos tempos.  No que respeita à arquitectura das suas igrejas, a eufórica adaptação à liturgia pós-conciliar, abafou consideravelmente os problemas que entretanto se foram tornando gritantes e hoje são apelo angustiado e constante do Papa Francisco. Se houver que construir novas igrejas, e a dúvida não será descabida, importa repensar a sua razão de ser e como se traduzirão em programa e em arquitectura. Já vem do Concílio o conceito de “Igreja pobre e servidora”. E do pós-concílio raramente têm vindo igrejas formalmente modestas e, em alguns casos, têm-se construído novas igrejas ostensivamente ricas e desmesuradas. É verdade que isto em parte se deve ao grande desfasamento que medeia entre a decisão de construir e o termo do longo processo da concretização (podem ser anos!) Tudo isto deveria ser tema de estudo e reflexão em universidades e seminários. É problema de sociólogos, urbanistas, clérigos, arquitectos, teólogos e liturgistas. Mas é também problema de não especialistas. Afinal, com ou sem igrejas, a cidade é de todos e uma igreja não é coisa individual.

Qual o edifício ou equipamento existente que gostaria de ter projectado? E o projecto que ainda gostaria de executar?

Quanto ao que de existente gostaria de ter projectado, é coisa em que nunca pensei, que não concebo. e não saberia como pensar. Quanto a um projecto que ainda gostaria de executar, a dificuldade é equivalente, porque a arquitectura não é coisa que em abstracto possa desejar executar. Alem do mais, o computador não se entende bem comigo e sem ele não se fazem hoje projectos.

Sintra, Outubro de 2016

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