Arthur Conan Doyle, Portugal e Sintra

Arthur Conan Doyle, escritor e médico escocês, mundialmente famoso pelas suas 60 histórias tendo como figura central o detetive Sherlock Holmes, estudou medicina na Universidade de Edimburgo, tendo publicado a sua primeira obra antes de completar 20 anos no Chambers’s Edinburgh Journal. Ainda estudante, teve sua primeira experiência naval como médico numa baleeira, passando sete meses no Ártico. Após a sua formação em 1881, serviu como médico a bordo do navio “Mayumba“, numa viagem à costa oeste de África.

Em 1882 juntou-se a George Budd, abrindo consultório em Plymouth, mas a relação entre eles foi difícil, e Conan Doyle passou a exercer por conta própria. Chegando a Portsmouth em junho daquele ano, voltou a escrever as suas histórias. A sua primeira obra foi Um Estudo em Vermelho, publicada no Beeton’s Christmas Annual de 1887, e foi a primeira em que surge o personagem Sherlock Holmes, baseado, segundo o mesmo, na figura de um seu professor, Joseph Bell. As futuras histórias com Sherlock Holmes foram publicadas na inglesa Strand Magazine.

Em 1885 casou com Louise Hawkins, que sofria de tuberculose, e faleceu em 1906. Em 1907 casou com Jean Elizabeth Leckie, por quem se apaixonara em 1897, mantendo já uma relação enquanto a primeira esposa ainda estava viva, e que morreu em 1940, em Londres.Teve cinco filhos, dois Da primeira esposa (Mary Louise e Arthur) e três da segunda (Denis, Adrian, e Jean Lena).

Vários são os aspetos que o ligam a Portugal, um deles a sua ligação ao Espiritualismo.

Em 1887, travou o seu primeiro contato com o Espiritualismo, iniciando neste mesmo ano com o seu amigo Ball, um arquiteto de Portsmouth, sessões mediúnicas e esse envolvimento levou-o a escrever sobre o assunto, tornando-se um dos seus maiores divulgadores e defensores. Em 1918 publicou “A Nova Revelação”, obra em que manifestava a sua convicção na explicação espírita para as manifestações paranormais, fazendo palestras sobre o tema.

Em “A Chegada das Fadas”, de 1921 reproduziu na obra teorias sobre a natureza e a existência das fadas e espíritos. Em “The History of Spiritualism, de 1926, abordou a história do movimento espiritualista anglo-saxónico e do Espiritismo. O assunto foi igualmente abordado no seu livro “The Land of Mist”, de 1926, de natureza ficcional, através do personagem “Professor Challenger”.

Nos últimos anos da vida, Conan Doyle manteve ligações com a Federação Espírita Portuguesa. Neste âmbito, deve assinalar-se a troca de correspondência mantida com a Revista de Espiritismo, cujo número 3, de maio-junho de 1928 publicou uma carta sua traduzida para português, em resposta a outra por ele recebida sobre o valor do espiritismo na busca da verdade, mediante a obtenção de factos conducentes a um melhor entendimento do desconhecido e do oculto:

Caro Senhor:

Seria preciso um livro para responder com propriedade às vossas perguntas. De facto, escrevi um livro A Nova Revelação, que foi, segundo julgo traduzido em português e que responde a todos os pontos que mencionais. (…) Não penso que as mensagens dos que amamos e perdemos sejam a finalidade do Espiritismo. A verdadeira revelação vem quando entramos em contacto com os espíritos elevados que nos explicam aquelas verdades religiosas que têm sido mutiladas e incompreendidas pelo género humano, só deturpadas e adulteradas pela insensatez do mundo, resolvendo as nossas dificuldades. (…)  Sinceramente seu, Arthur Conan Doyle.

De entre a equipa de redatores da revista, merece especial atenção Maria O’Neill, autora de Um Imitador de Sherlock Holmes, de 1909, a primeira coletânea de contos policiais redigidos por uma escritora portuguesa e publicados, à época, na revista mensal ilustrada Serões.  A influência de Conan Doyle em O’Neill constata-se não só no título da obra, mas também na construção da personagem principal, o Visconde Silvestre, advogado de profissão, que decide tornar-se detetive, decerto inspirada pela figura de Sherlock Holmes.

No número de julho-agosto de 1930, a mesma revista deu notícia do falecimento de Sir Arthur Conan Doyle, ocorrido em 7 de julho desse ano. O obituário confirma que Doyle mantinha um interesse particular pela Federação Espírita Portuguesa e sugere uma ligação do escritor a Severiano Ivens Ferraz, tendo Doyle dado à Federação Espírita Portuguesa o seu autógrafo em pronta resposta ao inquérito iniciado pela Revista de Espiritismo entre os vultos mais eminentes do Espiritismo mundial.

Entre 1913 e 1914, Doyle foi um dos porta-vozes dos presos políticos em Portugal, tendo feito campanha nos jornais britânicos, como se verifica, por exemplo, na carta de sua autoria publicada em The Times, no dia 13 de maio de 1913, sob o título “Political Prisoners in Portugal”. Nesta missiva, dirigida ao diretor do jornal, escreve Conan Doyle: “Portugal is our ancient ally, and we have given each other many mutual proofs of friendship in peace and in war. We cannot believe, however, that the present Government truly represents Portugal (…).”

 O protesto de Conan Doyle teve repercussão em Portugal, pois, em 4 de junho de 1913, o periódico A Capital  publicou uma resposta, também sob a forma de missiva, remetida pelo escritor André Brun intitulada “Carta a Conan Doyle – Os nossos presos políticos não comem há dois annos”, onde este não poupa críticas a Doyle, sublinhando que lhe parecia “boa a conjectura para lhe fazer sentir, Sir Arthur, que não corresponde com o reconhecimento devido à consideração que no nosso Paiz se vota á sua obra.”

Por essa altura já os romances policiais protagonizados por Sherlock Holmes eram divulgados e apreciados em Portugal.  Deve ainda salientar-se que A Capital publicou diariamente, entre 3 de junho e 21 de julho de 1913, em folhetim, pequenas histórias de Conan Doyle traduzidas para português por um anónimo.

A ligação pessoal de Arthur Conan Doyle a Portugal verificou-se desde cedo, pois, em 1868, uma das suas irmãs, Annette, veio trabalhar como governanta numa casa situada na rua do Sacramento à Lapa, n.º 24, em Lisboa. Seguiram-se-lhe duas outras irmãs, Connie e Lottie, com o objetivo de desempenhar idêntica tarefa na capital.

Doyle refere-se a tal como consequência da situação financeira da família, ajudando todos na educação do irmão mais novo, Innes Doyle. 

O falecimento de Annette a 13 de janeiro de 1890, em Lisboa, vítima de gripe e pneumonia, constituiu um duro golpe para o escritor. Doyle tentou viajar para Lisboa nessa altura, mas a mãe tê-lo-á convencido a permanecer em Inglaterra.

Tanto quanto foi possível apurar até ao momento, o escritor britânico passou por Portugal continental e arquipélagos atlânticos por três vezes.

A primeira, em 29 de outubro de 1881, numa viagem rumo à costa Oeste de África, a bordo do SS Mayumba, como médico de bordo. Nesta viagem, Doyle passou pela ilha da Madeira, mais concretamente pelo Funchal.

Em “On the Slave Coast with a Camera”, publicado em The British Journal of Photography, no dia 31 de março de 1882, Doyle, reportando-se à sua viagem a bordo do SS Mayumba, descreve a comunidade de Porto Santo, afirmando que era “inhabited by a few scattered fishermen and collectors of seaweed.”  Na manhã seguinte, tendo em conta a acalmia marítima, Doyle aventurou-se pela cidade, embora só tivesse conseguido fotografar a ilha adequadamente, ao final do dia, com a luminosidade crepuscular, devido ao efeito refletor produzido pela luz solar nas casas caiadas de branco.

Após a última viagem realizada por Conan Doyle pelo continente africano, o autor publicou as suas memórias sob o título Our African Winter, de 1929, obra que, curiosamente, inclui várias descrições da ilha da Madeira. Assim, Doyle considerava a magnífica paisagem madeirense apenas comparável à da montanha do Tibidabo, em Barcelona, ou à da baía de São Francisco.  Ao recordar a viagem à Madeira, Doyle descreve a típica viagem de carros de cesto, afiançando que, embora, no início, seja divertida, após meia dúzia de quilómetros percorridos torna-se cansativa. No respeitante aos habitantes da ilha, assinalava a insistência algo incomodativa dos vendedores ambulantes de souvenirs. Não obstante estes pormenores menos elogiosos, Conan  Doyle considerava a pequena ilha um local aprazível. De sublinhar a relação estabelecida por si entre a ilha da Madeira e o mito da Atlântida, no momento em que visitou o Cabo Girão, considerando a Madeira um lugar envolto num certo misticismo e propício à investigação científica.

A segunda realizou-se em setembro de 1909, a bordo do RMS Dunottar Castle, por motivos de lazer. Desta feita, visitou Lisboa, Sintra e Cascais. O Século de 19 de setembro de 1909 descreve a visita.

Nessa notícia constata-se a popularidade do escritor em Portugal, e consegue-se ainda, reconstituir parte do percurso relativo à breve estada de Conan Doyle entre nós.

Assim, em 17 de setembro, o escritor teria chegado a Lisboa, onde permanecera dois dias, prosseguido a viagem em direção a Espanha, no dia 19. De facto, no dia 17 de setembro de 1909 a primeira página do Diário de Notícias dá nota da chegada do navio, embora o nome de Doyle não seja expressamente mencionado:

Procedente de Southampton, Vigo e Porto, chegou hontem ao Tejo o vapor inglez “Dunottar Castle”, com 180 excursionistas inglezes. A excursão durará 19 dias e foi organizada pela “Cooperative Cruising”, vindo a bordo o respectivo secretario sr. F.G. Harman. O vapor é de 6:000 toneladas e comandado pelo tenente da reserva da armada inglesa sr. J.K. Gandy. A tripulação compõe-se de 143 homens. O vapor segue d’aqui para Cadiz (d’onde os excursionistas irão a Sevilha e Granada) Tanger, Gibraltar, Argel, Palmas, Marselha e Barcelona, regressando a Inglaterra por terra, via Paris, no dia 28 do corrente. O vapor sae hoje de madrugada do Tejo. Estes excursionistas foram hontem a Cintra, em número de 150, e em comboio especial, comboio que saiu da estação central às 11-12 da manhã, regressando pela tarde, a bordo do paquete que os conduz.

A terceira e última viagem efetuou-se em família, nos finais de outubro de 1928, a bordo do SS Windsor Castle

Em artigos da autoria de Conan Doyle encontram-se várias descrições de Portugal e das ilhas atlânticas

No âmbito das obras ficcionais de Conan Doyle encontram-se também referências a Portugal, inspiradas na passagem do escritor pela Madeira e pelas Desertas, enquanto médico de bordo, tal como se verifica em “De Profundis”, um conto publicado em 1892, no almanaque literário ilustrado The Idler. Nesta narrativa, Conan Doyle evoca, desde logo, a sua crença no espiritismo, através do relato de uma aparição em alto-mar:

“(…) Doubtless he died at this hour,” she whispered. “In hospital at Madeira. I have read of such things. His thoughts were with me. His vision came to me. Oh, my John, my dear, dear, lost John!” She broke out suddenly into a storm of weeping, and I led her down into her cabin, where I left her with her sorrow. That night a brisk breeze blew up from the east, and in the evening of the next day we passed the two islets of Los Desertos, and dropped anchor at sundown in the Bay of Funchal. The Eastern Star lay no great distance from us, with the quarantine flag flying from her main, and her Jack half way up her peak.

Neste conto, deve assinalar-se também o conhecimento do escritor sobre cartografia, associável à sua experiência em viagens por mares portugueses, pois as coordenadas geográficas mencionadas no excerto seguinte (“2lat. 35 N. and long. 15 W”) confirmam o local exacto onde o corpo de John Vansittart fora lançado ao mar – em pleno oceano Atlântico, entre o Funchal e Ponta Delgada: 

No conto “The Confession”, publicado no jornal britânico The Star, em 17 de janeiro de 1898, a ação decorre em Lisboa, no Convento de São Pedro de Alcântara, situado “at the corner of the Rua de St. Pedro”. (356) Conan Doyle descreve pormenorizadamente o interior do edifício, e relata algumas práticas religiosas e festividades e refere as curiosas oferendas ali deixadas, demonstrando que visitara o local.

ADRIAN CONAN DOYLE E SINTRA

Adrian e Arthur Conan Doyle

Sabe-se que o seu filho, Adrian Conan Doyle (1910-1970), viveu em Sintra, entre 1955 e 1965, mais concretamente na Quinta da Barracurra (hoje Quinta da Bela Vista), onde se encontrava parte do espólio de Conan Doyle. Adrian viveu em Zanzibar, de 1945 a 1946, mudou-se depois para Tânger, até 1955, em seguida para Portugal, e em 1965 rumou à Suíça, onde viria a falecer em 1970, levando consigo o espólio do pai. Entretanto, a quinta de Sintra foi completamente remodelada, transformando-se na atual Quinta da Bela Vista.

No centenário do seu nascimento, em 1959, realizaram-se, em Portugal, várias homenagens ao criador do Sherlock Holmes.

A Editora Bertrand publicou o livro Sir Arthur Conan Doyle – Centenary, 1859-1959, da autoria de Adrian Conan Doyle, numa edição de apenas cem exemplares. No dia 1 de maio de 1959, a RTP1 exibiu um pequeno documentário televisivo filmado na Quinta da Barracurra (Bela Vista) com produção e texto do criminologista Artur Varatojo, com a autorização de Adrian Conan Doyle.

Ainda no âmbito do centenário, destaca-se a obra de Francisco Osório Calheiros intitulada Sir Arthur Conan Doyle (1960), publicação de duzentos exemplares, da Academia Portuguesa de Ex-Libris, contendo reproduções de documentos cedidos por Adrian Conan Doyle, o qual, de acordo com Osório Calheiros, se encontrava “ligado a Portugal, pois passa largas temporadas na sua quinta de Sintra, onde se guardam com preciosos cuidados a biblioteca, documentos e objectos que foram de seu Pai”.

Numa carta datada de 15 de dezembro de 1953, dirigida a Salazar, Adrian Conan Doyle manifestou o seu reconhecimento pela importância conferida à obra do pai, algo por ele experienciado através do prestígio que o apelido Conan Doyle alcançara em Portugal. No dia 1 de janeiro de 1961 a RTP apresentou uma entrevista a Adrian Conan Doyle, na qual o filho do escritor demonstra grande respeito e admiração por Portugal, valorizando a ação das tropas portuguesas nas “províncias ultramarinas”, numa altura em que a comunidade internacional, incluindo o Reino Unido, criticavam a atitude do Regime face às colónias em África.  Neste contexto, Adrian, mostrando-se claramente em sintonia com a ideologia do Estado Novo, criticava a atitude do governo britânico, por, segundo ele, ignorar a secular aliança luso-britânica.

Share Button

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top