Escritor, poeta e ensaísta, João Rodil nasceu nas Azenhas do Mar, a 22 de Fevereiro de 1961. Com mais de vinte obras publicadas, muitas das quais sobre a História, a Literatura e a Etnografia sintrense, objeto preferencial de uma vida de estudo e investigação.
É autor e apresentador de vários documentários para televisão, colaborador em jornais e revistas nacionais e internacionais, conferencista e coordenador de múltiplos congressos, colóquios e encontros culturais.
O presente artigo resultou da sua comunicação ao V Encontro de História de Sintra, promovido pela Alagamares no Palácio da Vila de Sintra em Outubro de 2017
Ao longo da minha vida tenho definido como particular interesse, na área da investigação local, a produção literária que, ao longo dos séculos, se produziu sobre Sintra. De facto, desde a Antiguidade Clássica aos dias de hoje, muitos foram os autores que deixaram registadas as suas impressões sobre o espaço sintrense, tanto no panorama literário português como estrangeiro.
Esse conjunto imenso de obras literárias constitui um importante acervo que muito contribuiu para a construção do imaginário de Sintra, muito divulgou as suas belezas, caracterizou épocas, produziu documentos do mais destacado relevo e foi matéria fundamental na elevação de Sintra a Património Mundial.
Muito mais pobre seria Sintra sem as referências de Plínio ou Estrabão, de Alhumini Alimiari ou Ibn Mucana Alcabedac. Que seria da nossa História sem as Crónicas de Fernão Lopes ou o Cancioneiro de Resende? E os autos de Gil Vicente, os escritos de João de Barros ou as estâncias de Camões? Estaria, por certo, incompleto o romantismo de Sintra sem o Glorioso Eden de Byron, as belíssimas descrições de Beckford, a obra de Garrett, a visão de Herculano, os romances de Camilo e de Eça. Este Património Imaterial de Sintra, onde se devem juntar ainda as lendas, o folclore, as tradições e tantas outras coisas, ocupa um lugar proeminente em todos os aspetos da vida, da paisagem e da História de Sintra.
É nesta perspetiva – a de coligir e estudar a Literatura referente a Sintra – que apresento aqui esta comunicação, a que dei o título Christopher Isherwood e a Geração Auden em Sintra. É necessário esclarecermos, aos menos avisados, que, em Inglaterra, a geração literária dos anos 30 do século XX, é conhecida como Geração Auden, numa referência clara a W.H. Auden (1907-1973), um dos maiores poetas de sempre e verdadeiro impulsionador de uma nova abordagem literária, os dram poems, e que influenciou muitos dos jovens escritores de então. Contudo, para um melhor enquadramento dos factos que aqui iremos tratar, talvez seja pertinente conhecer melhor o percurso dos autores, e atores, desta estadia por terras do Monte da Lua.
Christopher Isherwood nasceu a 26 de Agosto de 1904 em Inglaterra, e viria a falecer nos Estados Unidos da América a 4 de Janeiro de 1986, para onde tinha emigrado em 1939, tendo-se naturalizado cidadão americano em 1946. O seu conjunto de contos Adeus a Berlim foram a fonte de inspiração para a famosa peça I Am a Camera e, posteriormente, para o ainda mais célebre filme Cabaret, soberbamente interpretado por Lisa Minelli.
Em 1932, Isherwood foi viver para Berlim, juntamente com o seu companheiro Heinz Neddermayer, onde podiam disfrutar de uma maior liberdade no seu relacionamento homossexual. Mas os ventos negros da intolerância já sopravam, em 1935, de forma violenta. O movimento nazi liderado por Adolfo Hitler semeava, então, o terror pelas ruas de Berlim, perseguindo raças, ideologias e modos de vida. Assim, perante este cenário de totalitarismo crescente, os dois companheiros decidem abandonar a cidade alemã, viajando até Antuérpia. É daí que apanham o vapor que os traria a Portugal.
Chegados a Lisboa, a 21 de Dezembro desse ano, preferiram rumar a Sintra em busca de uma pacatez que lhes possibilitasse viver em paz. Instalam-se num hotel por duas ou três semanas, até conseguirem alugar uma casa em São Pedro de Sintra, a Villa Alecrim do Norte que, então, pertencia a uma inglesa de nome Mrs. Mitchell.
Esta casa ainda existe, e fica na Rua Albino José Batista (nº 13-15), que faz a ligação entre o Jardim da Vigia e Chão de Meninos, em São Pedro de Sintra. É curioso que o povo, tradicionalmente, chama ao local o Bairro dos Ingleses, certamente porque as propriedades naquela zona pertenceriam, na sua maioria, a cidadãos britânicos.
É nesta Villa que Isherwood e Heinz vão receber os seus amigos vindos de Inglaterra, nomeadamente W.H. Auden e Stephen Spender (1909-1995), este último acompanhado de Tony Hyndman, um organista galês intérprete de música religiosa. A eles juntar-se-ão ainda outros nomes, como o poeta Brian Howard (1905-1958) que morre novo graças ao abuso de drogas e álcool; ou James Stern (1904-1993) escritor irlandês que se notabilizou, sobretudo, pelas suas surpreendentes short stories.
Auden e Spender são aqueles que permanecem mais tempo em Sintra. E será aqui, na Villa Alecrim do Norte, que Isherwood escreverá, a meias com W.H. Auden, The Ascent of F6. Também em São Pedro, Christopher Isherwood terá escrito alguns dos contos que dariam o livro Adeus a Berlim. Mas a sua produção literária em Sintra foi mais além. Iniciou a novela Paul is Alone, que mais tarde abandonaria, para regressar ao seu The Lost que, entretanto, deixara de parte.
Certo é que estes três grandes vultos da Literatura mundial escreveram em conjunto, durante a permanência de Auden e Spender na casa de Isherwood, de Dezembro de 1935 a Março de 1936, um diário que permaneceu inédito até 2012, quando o filho de Stephen Spender – Mathew Spender – o publicou em Itália, sob o título de Il Diario di Sintra, na editora Barbès, de Florença, depois de o ter tentado em Inglaterra e de não ter conseguido o interesse de qualquer editora.
Ora, uma tradução para português e respetiva publicação deste Diário de Sintra afigura-se prioritária, quer pela dimensão literária dos seus autores, quer pelos conteúdos, nomeadamente as referências a Sintra. Aliás, julgo tratar-se de uma obra de grande valor cultural, turístico e económico para a região sintrense, já que poderá suscitar a um público anglo-americano uma apetência por Sintra, como o fizeram outras obras ao longo dos tempos.
Com a partida dos amigos, em Março de 1936, o casal volta a ficar só em São Pedro. Mas, felizmente, Isherwood vai escrevendo aos amigos, deixando nessa correspondência as suas impressões sobre Sintra e as suas gentes. Note-se, a título de exemplo, um excerto de uma carta enviada a Stephen Spender, datada de 12 de Maio daquele ano:
«Villa Alecrim do Norte
São Pedro, Sintra
May 12 (1936)
|…| I love Portugal. The people are charming. They lean over the wall when we are having meals in the garden and wish us a good appetite. But how they do sing! The two maids sing in harmony, very old folk songs, with hundreds of verses, until I have to ask them to stop, as I can’t hear myself write. And the farmer, ploughing with oxen just beyond the garden wall sings a song to the oxen which lasts all day. Sintra is a queer place. On one of the hills, a man and a boy (now no longer) are building a luxury hotel. They have been on the job, all by themselves, for ten years, and they reckon that another ten will see them through (sic). Then they will sale it to a combine – but not in our time.
I am slowly learning Portuguese. It is hideous but rather amusing to see how indistinctly one can talk. You must never, whatever you do, open your mouth at all. |…|»
Esta harmonia idílica, esta paz serena desfrutada à sombra dos bosques de Sintra, será repentinamente quebrada. A 25 de Julho, o cônsul alemão em Lisboa, informado da presença de Heinz Neddermayer em Sintra, então com cerca de vinte anos de idade, ordenou-lhe que se apresentasse de imediato no consulado para ser incorporado no exército do seu país. Caso contrário, seria dado como desertor, podendo vir a ser extraditado de Portugal, enfrentar um tribunal de guerra e ser condenado a prisão militar.
Esta notificação caiu como uma bomba no seio do casal. Isherwood contrata um dos advogados mais caros de Lisboa para tentar salvar o companheiro. Depois de algumas somas avultadas de dinheiro, o advogado diz que nada pode fazer. De regresso a Sintra, nas traseiras do café em frente da estação de comboios, um empregado repara no casal que chorava e perguntou o que se passava. Quando lhe explicaram, contando a inevitabilidade de Heinz ter que cumprir o serviço militar e a impossibilidade de conseguirem um visto que lhes permitisse sair do país, o empregado exclamou: – Não se preocupem. Eu trato disso. Incrédulos, inquiriram quanto levaria ele para tratar do assunto, habituados a que lhes pedissem dinheiro por tudo e por nada. Mas o facto é que este empregado não lhes levou nada e cumpriu com a sua palavra. Isherwood e Heinz conservaram-se na casa, discretamente, até que foi dado um visto ao alemão para poder sair do país.
Julgo que este «empregado» seria pessoa influente nos meios políticos de então. Nesta época, tinha-se formado o núcleo da União Nacional em Sintra, liderado pelo Dr. Álvaro de Vasconcelos. Muito provavelmente, este seria um homem bem colocado dentro do partido único criado por Salazar, capaz de mover influências ao ponto de conseguir o visto para Heinz Neddermayer.
A 21 de Agosto de 1936, Christopher Isherwood já se encontra em Londres. No ano seguinte, estando com Heinz no Luxemburgo, o seu amante alemão é preso pela Gestapo e levado para a Alemanha, condenado a três anos e meio de trabalhos forçados e cumprimento do serviço militar. Foi a última vez que estiveram juntos.
A 19 de Janeiro de 1939, Isherwood e Auden, desolados com os acontecimentos na Europa, partem para os Estados Unidos da América. Christopher mudar-se-á, definitivamente, para a Califórnia, onde a sua casa, em Santa Mónica, foi palco de afamadas tertúlias entre escritores e celebridades do mundo do cinema. Em 1946, ele e W.H. Auden naturalizam-se como cidadãos americanos.
De Heinz Neddermayer, sabemos que foi condenado a três anos e meio de trabalhos forçados e cumprimento do serviço militar. Mas que sobreviveu à II Guerra Mundial. Contudo, em 1938 já se encontrava em liberdade condicional, tanto que casou com uma senhora de nome Gerda, da qual irá ter o seu único filho, Christian, em 1940. Heinz e Christopher Isherwood apenas se encontrarão mais uma vez, precisamente em Novembro de 1952, quando o escritor visita a Inglaterra e a Alemanha durante a produção de Adeus a Berlim.
Nas notas de Isherwood ainda podemos observar mais dois momentos em que comunicaram por carta. O primeiro em 1956, quando Heinz passa por um período bastante difícil a nível financeiro. E o seu amigo, embora distante há tantos anos, logo tratou de lhe enviar dinheiro. O último é um postal que data de 1960, onde Heinz envia condolências por altura da morte da mãe de Isherwood.
Esta relação de Christopher Isherwood com Sintra – e de todos os outros poetas, artistas e escritores que frequentaram a sua casa em São Pedro –, embora breve foi bastante profícua, quer no processo criativo do escritor, quer na sua relação com o espaço inspirador de Sintra e a amabilidade do povo sintrense. Para sempre ficarão as suas palavras de admiração e de gratidão para com esta vila mui prezada. Saibamos nós preservá-las e divulgá-las, a bem da cultura e da amizade entre os povos.
João Rodil