Entrevista com o escritor e editor D.H.Machado. D. H. Machado nasceu em Lisboa no ano de 1974, e começou a escrever poesia aos 12 anos. Após os 20 anos dedicou-se à vida académica e profissional e “O Aprendiz” marca o seu regresso à escrita. Em 2003, foi-lhe atribuído o Prémio Revelação Cesário Verde pela obra “Dionísias: As celebrações”, escrita quando tinha apenas 19 anos. É autor entre outros de Heathcliff, Nighthawks e outras observações e Rach 3, e responsável pela editora The Poets and Dragons Society, tendo participado recentemente num evento literário promovido pela Alagamares
O D. H. Machado é escritor, editor e advogado. Como começou o seu percurso literário e como vê o seu contributo nessa área?
O percurso literário teve o seu início em 2018. O ser escritor sempre foi uma ambição de criança, ainda quando era apenas um leitor. A vida académica e profissional vigorou durante cerca de 20 anos e, em 2018, tomei a decisão de retomar a escrita num panorama mais profissional. Neste momento, estou dedicado de corpo e alma à escrita e à edição. Não é fácil dar relevo e identidade ao meu contributo. A minha escrita deriva dos meus interesses e, numa perspetiva mais intuitiva, assenta num apelo ao culturalismo que deve imperar numa sociedade mais humanista.
Fale-nos um pouco da sua obra e dos seus projetos para o futuro. Como é o seu processo criativo?
A minha obra tem uma ligação directa com a minha forma de ver o mundo e de sentir a literatura no seu todo. A pós-modernidade veio acentuar um distanciamento com as tradições e uma reconstrução de uma identidade em constante transformação. Os meus livros procuram manter o equilíbrio entre a liberdade formal e estética e as tradições mais clássicas. Um livro com o Heathcliff, escrito em soneto inglês, com forma rígida, e que tem por base um dos clássicos da literatura inglesa, The Wuthering Heights de Emily Bronte, usa uma linguagem mais contemporânea. Por outro lado, o Rach 3, o diário ficcional do compositor Sergei Rachmaninoff, retrata o quotidiano de uma Rússia imperial em declínio durante um período em que já se ouviam os ecos da Revolução de 1917. Neste livro, mais uma vez, procurei transportar o leitor para uma Rússia imperial em transformação, trazendo à luz o processo criativo do músico.
Uma peça de teatro. Esse será o meu próximo projecto. É algo que tem estado na furna e que será concretizado nos meses vindouros. Não vou revelar o tema, mas posso adiantar que é a nossa História de Portugal.
O processo criativo passa por estudar o contexto histórico e social do tempo em que a acção decorre. Por exemplo, o processo criativo do Rach 3 passou por estudar música, os escritos do músico e uma época muito concreta. É muito raro escrever sem ter um contexto estético bem definido.
“Sem intelectualidade, as ideias tornam-se antimatéria e aí, sim, as ideias desaparecem e deixam de existir.”
O que é ser intelectual hoje?
Uma pergunta pertinente. É importante ter uma definição de intelectual. Vamos pressupor que um intelectual será alguém que tem uma abordagem mais profunda de determinado tema. Esse estudo profundo irá permitir relacionar esse tema com outros e que daí retiram-se frutos: as ideias. Este processo de “fotossíntese” acaba por criar um universo que permite uma evolução do tema, do conceito, quer seja uma palavra, um livro, um filme, um concerto ou até uma pintura ou fotografia. O intelectual tem de ter essa função “carbónica”, onde nada se perde, tudo se transforma. Sem intelectualidade, as ideias tornam-se antimatéria e aí, sim, as ideias desaparecem e deixam de existir.
“Nunca me zanguei com nenhum livro. Fazem parte de mim e da minha evolução. Para o bem e para o mal.”
A sua literatura é classificável, ou classificar é limitar? Qual a sua obra mais conseguida? Já se zangou por ter escrito alguma delas?
A classificação não é uma limitação, mas sim um contexto necessário. Tenho dificuldade em classificar os meus livros, mas é notório um padrão criativo. Parte das minhas obras, tal como Heathcliff, Nighthawks e outras observações e Rach 3, funcionam como livros que preenchem um vazio ou ausência de informação. Heathcliff fala-nos dos últimos momentos de vida da personagem icónica de Emily Bronte e procura retratar a paixão arrebatadora por Catherine. Nighthawks e outras observações conta-nos uma história ficcional das quatro personagens retratadas na pintura de Edward Hopper, e Rach 3, como dito há pouco, fala sobre o período em que Sergei Rachamninoff escreveu o concerto para piano n.º 3, um período em que são omissos registos biográficos de qualquer forma.
A obra mais conseguida será o meu último livro: Eliot. Este ano marca o centenário do poema The Waste Land de T. S. Eliot. Originalmente publicado em 1922, foi o poema mais revolucionário da sua época, oferecendo uma visão devastadora da civilização moderna. O meu livro é uma homenagem ao poema e ao poeta. Como Eliot somos confrontados com um registo autobiográfico que retrata a minha ligação com a literatura até à minha primeira leitura do poema e com uma visão perturbante da humanidade no tempo actual. Neste momento, sinto conforto em dizer que é o meu livro mais conseguido.
Nunca me zanguei com nenhum livro. Fazem parte de mim e da minha evolução. Para o bem e para o mal.
Pode dizer-se que o escritor escreve sempre o mesmo livro e toda a obra é autobiográfica?
Penso que tal não se aplica ao meu caso. Apesar de me colocar de corpo e alma na posição de todas as minhas personagens, mesmo aquelas que são diferentes de mim, é raro acrescentar elementos que me identifiquem.
Como vê o papel da crítica literária (ou ausência dela) nos dias que correm?
Ela existe, embora não seja com a amplitude desejável. O papel é importante e pode ter um papel determinante na forma como uma obra é lançada ao mundo. Há livros que vivem no silêncio e livros que explodem como supernovas, sendo que a qualidade da obra não é por vezes o que as diferencia. A crítica literária é uma parte fundamental da intelectualidade, pecando apenas por ser, na maioria das vezes, redundante.
Acha que há um panorama cultural português inovador? Que traços e autores mais marcantes vê no que se escreve e publica nos dias de hoje?
Sim, acredito que estamos a viver um período de transição e que a inovação surge nestes momentos. Acredito que a adolescência deste século é propícia à vanguarda e que há bom trabalho a ser produzido. Há um traço estético muito interessante na literatura que se vai fazendo hoje, mas há autores que se destacam pela inovação e barreiras que procuram romper. Gosto do que Valter Hugo Mãe tem escrito e da forma trágica como trata o tema do amor. Outro autor que tenho lido e que vou editar este ano é o Luís Filipe Sarmento. O seu último livro, Beat, galardoado com o Prémio Ulysses 2021, é uma homenagem alucinante à Beat Generation. Mas é mais do que isso: é um documento histórico que fala da liberdade em tempos que não era plena, dos golpes que a cultura tem sofrido ao longo dos últimos 50 anos. Sendo um autor com uma longa carreira, o Luís Filipe Sarmento tem inovado na linguagem e traçado um novo caminho para a sua escrita. O Gonçalo M. Tavares é um autor que leio e releio com assiduidade. Tem uma linguagem com que me identifico e aprecio a forma como retrata a história, seja através da barbárie ou do seu aparente oposto, como uma máquina que reduz o ser humano a uma mera coisa.
O que pensa que procura o leitor quando busca uma obra literária? O leitor é generoso ou é um ser distante e que tem de ser conquistado?
Como leitor, procuro enriquecimento, o aprofundar do conhecimento. Mas porque assumi a escrita como forma de vida e profissão. O leitor em geral, acredito, procura uma forma de exílio que pode passar por diversas formas de literatura. A vida é violenta para um leitor que tens hábitos de leitura. Há uma tendência para que o tempo de leitura se reduza cada vez mais. Gosto de pensar que a boa literatura é lida, mas, em momentos mais críticos, penso que pode ser uma utopia.
Como vê a questão do acordo ortográfico? Divide, une ou nem pelo contrário?
Sou uma pessoa conservadora. Apesar de ter consciência que a linguagem evolui e se adapta ao ambiente, penso que os motivos subjacentes ao acordo ortográfico são errados. A diversidade cultural cria riqueza na linguagem e penso que a uniformidade pode ser limitativa. Eu sou um dos resistentes.
O que deveria ser feito para aumentar o gosto pela leitura?
Cortar a electricidade a partir das 21h e voltarmos aos candeeiros a petróleo ou às benditas velas. Tirando isso, continuar a escrever bons livros.
Entrevista de Fernando Morais Gomes