«O caminho que sobe é o caminho que desce.
O peregrino quer, muito naturalmente,
ascender, mas a viagem de início, deve levá-lo
para baixo, para longe da luz…»
Peter S. Hawkins
(Prof. de Religião da Universidade de Boston,
no seu excelente livro sobre Dante
e a Divina Comédia, Inferno e Paraíso,
Lisboa, 2013, p. 66.)
Certos visitantes da Quinta da Regaleira têm, por comodidade sua, a tendência a subir o “poço iniciático”, contrariamente à sua função simbólica e mítica que determina uma prévia descida aos mundos subterrâneos, inferiores, «infernais» – etimologicamente de ad infero – para uma vez feito esse percurso de escuridão, podermos sair enfim para a luz. Estes percursos de «descida e ascensão», de «morte e ressurreição» simbólicos têm uma grande universalidade na história cultural, espiritual e religiosa do Ocidente, desde as religiões de mistérios, de raiz xamânica, ao cristianismo, até à literatura antiga, chegando por fim aos rituais das fraternidades iniciáticas. Só escapa (mal) a este arquétipo um «new age» apressado – mas «a precipitação é obra do diabo»… — mal compreendido e mal digerido por pessoas que se consideram já seres angélicos, dispensando por isso etapas sacrificiais inerentes à nossa condição (gnóstica) de seres «caídos» neste mundo material, mas que eles julgam que «isso» da descida é só para seres inferiores (os outros, claro) – como, aliás, já tinha escrito em 2005 no meu livro Os Jardins iniciáticos da Quinta da Regaleira.
«Exemplo entre muitos, mas notável pela sua dimensão espiritual e literária, é a Divina Comédia de Dante Alleghieri e o seu percurso pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, percurso esse que está presente nos Jardins da Regaleira, em três etapas:
— a descida do poço com nove níveis, tal como os nove círculos do Inferno de Dante;
— a saída para a luz através da passagem pelo lago até chegar à clareira na floresta;
— a ascensão subsequente no exterior da montanha.
No entanto, apesar de estar referenciado à Obra de Dante, este percurso serve de estrutura exemplar para outros percursos de «descida e ascensão» que povoam o universo cultural e religioso ocidental.
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«Onde la traccia vostra e fuor di strada…» (Onde o vosso caminho está fora da estrada…)
Esta passagem da Divina Comédia que eu coloquei logo no começo do meu primeiro artigo sobre a sintrense Quinta da Regaleira (escrito em 1990 e publicado em 1991 nas revistas Vária Escrita e Quinto Império), revela a preocupação que tive em assinalar a presença de Dante naquele espaço criado entre 1900 e 1910/1, na sua forma actual, pelo proprietário António Augusto Carvalho Monteiro e pelo seu arquitecto Luigi Manini, natural de Cremona, Itália, essa presença da obra-prima de Dante centra-se em dois temas principais:
A — a descida ao Inferno, através do «poço iniciático», tema central dos jardins da Regaleira e que é de algum modo, física e simbolicamente, o seu «centro organizador»;
B — o «515» que surge por três vezes, duas nos jardins e uma no Palácio.
É possível que o arquitecto da Regaleira, Luigi Manini, tenha tido a ver com a presença destes temas na quinta, mas Carvalho Monteiro, o proprietário e promotor da construção não era nenhum nabo ignorante — como alguns durante algum tempo quiseram fazer crer… -, pelo contrário era alguém que tinha muito interesse nestes mundos do mistérios e das iniciações que estão presentes na Regaleira, quer na sua forma cristã, quer na sua forma pagã e com diversas influências literárias, mas sendo, de facto, a obra de Dante a sua principal referência.
A possível influência do Sonho de Polífilo de Colonna (Veneza, 1499), foi também por nós apontada no meu ensaio «A Linguagem dos Pássaros», inserido em anexo ao livro O Esoterismo da Quinta da Regaleira, outrora editado pela Hugin. Referi esta pista pois o livro de Colonna inspirou alguns jardins «iniciáticos», «dos sonhos» ou «dos deuses», como têm sido chamados pelos especialistas, jardins que existem desde o Renascimento até aos nossos dias um pouco por toda a Europa, mas com relevo para a Itália (Bomarzo, Marquês de Torrigiani, Villa d’Este, Boboli, etc.), mas também em Inglaterra (Stourhead), França (Désert de Retz), e Alemanha (Vorlitz Park).
É importante recordar aos nossos leitores que a Quinta da Regaleira tem duas componentes essenciais, o palácio — celebração da grande dimensão histórica e mítica de Portugal — e os jardins —celebração das tradições religiosas, espirituais e iniciáticas que informaram, e informam muito da cultura ocidental e que foram inspiradas por tradições anteriores vindas da margem sul e oriental do Mediterrâneo, tradições essas que passamos a referir:
— Religiões de Mistérios, em que os deuses morriam e ressuscitavam: Osiris — morto e cortado em 14 pedaços pelo seu irmão Seth —, Attis, Adonis, Dionísio – também morto pelos Titãs e cortado em 14 pedaços. De referir que o chamado Patamar dos Deuses da Regaleira tem vários deuses da mitologia greco-romana: Mercúrio/Hermes, Vulcano, Baco/Dionísio, etc. mas com referência também uma deusa Ceres/Deméter — cuja filha foi arrastada pela os mundos inferiores pelo rei dessas regiões, Hadés, mas que finalmente acabou por passar uma parte do ano debaixo de terra e a outra à superfície – e um herói e semi-deus, Orfeu, que também desceu aos infernos em demanda da sua amada Euridice.
— O próprio Cristianismo — a Quinta da Regaleira tem nos jardins uma Capela cristã — em que Cristo, depois da Paixão – em 14 estações da Via Sacra —, «morreu, desceu aos infernos, ressuscitou ascendeu aos céus onde está sentado à direita de Deus-Pai todo-poderoso…».
— Este arquétipo de descida e ascensão e de morte e ressurreição vai estar presente na grande literatura de antanho, como as Metamorfoses de Ovídio, a Eneida de Virgílio e a já referida Divina Comédia de Dante.
– Por fim, as sociedades iniciáticas – rosacrucianas, templárias, maçónicas, etc. – criaram rituais de iniciação em que os neófitos viviam, simbolicamente, um processo de morte e ressurreição.
A — Descida aos infernos
É preciso descer lucidamente os poços com degraus e reencontrar os seus estados sucessivos, pois, para atingir o Paraíso, é preciso, obrigatoriamente, passar pelo Inferno, um dos estados da iniciação: a realização efectua-se no núcleo de pedra e a segunda morte iniciática reside na cristalização subtil.
Mas o eleito encontrará aí a força ascensional que lhe permitirá alcançar o céu, pois soube recolhê-la no Templo subterrâneo. Jean-Pierre Bayard La Symbolique des Mondes Souterrains, p. 76
Como já vimos anteriormente, para além das tradições religiosas, espirituais e mágicas, também a literatura antiga tem abundantes, de facto, referências a estas provas subterrâneas, em grutas e em cavernas— não sendo a Caverna de Platão, nem o Antro das Ninfas de Porfírio, de modo algum alheios a este universo —, findas as quais começa a ascensão para a luz, em obras tais como a Eneida de Virgílio e A Divina Comédia de Dante, esta muito próxima da Regaleira, como já referimos, embora o relato de Virgílio, pela sua universalidade, também se possa reconhecer na Quinta de Carvalho Monteiro e de Manini. Virgílio, na Eneida (particularmente o capítulo VI), coloca os Campos Elísios em baixo, na Terra, atribuindo-lhes ao mesmo tempo o papel de morada dos espíritos dos eleitos.
Eneias, o herói dessa saga, tal como Teseu, que lutou contra os monstros a fim de ser reintegrado no reino da luz, e como Telémaco, que penetra igualmente no reino das sombras saindo, como a Sibila, por uma abertura diferente da entrada – o que acontece também na Regaleira! —, atravessa os bosques que circundam o lago Averno e entra numa gruta, chegando ao limiar do lugar infernal, onde reinam os monstros mitológicos, como o cão Cérbero, de tripla cabeça, que ele vence. Eneias, verdadeiro herói e verdadeiro iniciado, tem, então, como todo o Homem, dois caminhos: «o do Tártaro — a vasta prisão com uma tripla cerca de muralhas — ou o do Eliseu —, o reino da doce luz, da verdura permanente». Este último é o caminho desejável para todos nós e, na Regaleira, o caminhante pode errar por caminhos labirínticos e por falsas saídas, ou então dirigir-se sobre as águas, pela vereda que dá acesso ao bosque verdejante onde irrompe a luz solar, em direcção aos dois santuários, simbolicamente equivalentes: o pagão, a Gruta de Leda, ou o cristão, a Capela Templária. A propósito desta dicotomia paganismo-cristianismo, tão bem resolvida na Regaleira, o Poço Iniciático (o maior) parece ser o lugar síntese dos dois universos, já que remete para o mundo das religiões de mistérios e para as demandas corajosas dos heróis da literatura antiga, que são também demandas amorosas – como o faz, aliás, Dante na sua Divina Comédia. De facto, como nos diz René Guénon, no seu Esoterismo de Dante, «A epopeia de Dante é Joanita e gnóstica […]. A sua viagem através dos mundos sobrenaturais efectua-se como a iniciação nos mistérios de Elêusis e de Tebas. É Virgílio quem o conduz e o protege nos círculos do novo Tártaro, como se Virgílio […] fosse, aos olhos do poeta florentino, o pai ilegítimo, mas verdadeiro, da epopeia cristã».
Na realidade, esta é a característica principal da Divina Comédia de Dante, a necessária «descida aos Infernos», que antecede a «ascensão aos Céus». Recordemos brevemente a história, na síntese (iniciática) que nos dá Bruno Pinchard: «Na véspera de 6ª Feira Santa, a nove de Abril de 1300, Dante sai de uma floresta obscura para caminhar em direcção a uma montanha iluminada pelos raios do sol nascente. Mas ele não pode encetar essa ascensão para esse cume, pois três animais (entre os quais um leão) lhe barram o caminho. Só a aparição do antigo poeta Virgílio o liberta da tentação de retornar à floresta inicial, mostrando-lhe a necessidade de começar toda uma nova viagem. Ser-lhe-á necessário, com efeito, penetrar e atravessar o mundo subterrâneo até ao centro da terra, para só reencontrar a luz do dia no dia de Páscoa, na ilha dos antípodas, que é a Ilha do Purgatório. Do alto da montanha que domina esta ilha, ele partirá então, conduzido pela mulher amada e morta, Beatriz, para uma exploração completa do domínio celeste».
Numa época de ignorâncias e de facilitismos diversos, entre os quais os do domínio espiritual, convém lembrar o adágio antigo de que precipitatio a diabolo, isto é, «a precipitação é obra do diabo».
Razão pela qual convém insistir, como o faz Bruno Pinchard: «Ler Dante é, assim, compreender que é impossível elevar-se para a luz, sem se empenhar primeiro numa «descida infernal», no coração da terra […] através de uma confrontação integral com o mundo da morte, até ao centro do universo. […] Só o afrontar a morte e o mal, em nome do amor, permite o acesso aos estados superiores do ser».
Dante propõe-nos, pois, «em primeiro lugar uma visita ao interior da terra (para encontrar) o segredo do mundo nesta demanda abissal que é, ao mesmo tempo, uma rectificação de si próprio» — Bruno Pinchard, no excelente artigo «Dante au Vitriol – Rituel de l’Amour et de la Mort selon les Fidèles de l’Amour», incluído no número monográfico Foi et Rituels de Régénération, de Travaux de la Loge Nationale de Recherches Villart de Honnecourt, nº. 53, Grande Loge Nationale Française, Paris, 2003, pp.17-36.
Numa passagem de Guénon, complementar a este texto de Pinchard, e que pode fazer a síntese do que tenho escrito ao longo dos meus trabalhos sobre a Regaleira, e daquilo que McIntosh escreveu sobre os Jardins Iniciáticos, o autor de O Esoterismo de Dante, René Guénon, afirma por seu turno: «Morte e descida aos Infernos, por um lado, ressurreição e ascensão aos Céus, por outro lado, são como que as duas faces inversas e complementares, de que a primeira é a preparação necessária da segunda, e que se encontraria sem dificuldade na descrição da «Grande Obra» hermética; e a mesma coisa é nitidamente afirmada em todas as doutrinas tradicionais». Ou, ainda, respondendo àqueles que se interrogam sinceramente «porque é que essa ascensão deve ser antecedida por uma descida aos Infernos», Guénon aponta algumas razões espirituais e iniciáticas, que radicam numa perspectiva gnóstica: «por um lado, essa descida é como uma recapitulação dos estados que precedem logicamente o estado humano, que determinaram as suas condições particulares e que devem assim participar na «transformação» que se vai efectuar; por outro lado, ela permite a manifestação, segundo certas modalidades, das possibilidades de ordem inferior que o ser traz ainda em si num estádio não desenvolvido, e que devem ser esgotadas por ele antes que lhes seja possível alcançar a realização dos seus estados superiores».
Como escreve ainda Jean-Pierre Bayard, especialista nas iniciações e em simbólica, esotérica em particular, na sua obra Simbólica dos Mundos Subterrâneos, «todas as tradições ensinaram que é preciso primeiro atingir o fundo do Inferno para começar a ascensão para os mundos celestes; só se pode atingir o Céu passando pelo Inferno, dando assim a prova de que se é digno de aceder a um mundo superior».
O antropólogo contemporâneo Maurice Bloch — no livro La violence du réligieux, Ed. Odile Jacob, Paris, 1997, pp. 9-20 — sustenta que este esquema de morte e ressurreição constitui a «estrutura irredutível mínima fundamental […]» de todos os rituais, e não apenas dos iniciáticos, mas dos religiosos em geral. Esta «quase-universalidade» assenta na «relação entre o processo religioso e as noções de vida e de morte biológicas», pretendendo, como vimos, o processo iniciático inverter o processo natural que vai da vida para a morte, estabelecendo um processo cultural que vai da morte para a vida.
Os mundos subterrâneos, que estão presentes na Regaleira, quer na galeria subterrânea que circunda a entrada de água do lago junto ao muro da estrada, quer nos dois Poços Iniciáticos, o menor e o maior, quer ainda nos dois santuários, a Gruta de Leda e a cripta da Capela, são um tema universal que atravessa a história cultural e espiritual da humanidade.
De facto, eles estão presentes, desde as mais remotas formas de cultura humana, como lugares de refúgio, mas também lugares de perdição e de morte. Aqui, a morte física, que vai da vida para a morte, simboliza, então, a morte iniciática, que vai da morte para a vida, pois, como refere Jean-Pierre Bayard, «a morte iniciática figura uma morte fictícia e ela só se pode realizar nas entranhas da Terra, da Terra amamentadora para a qual voltamos aquando da nossa morte terrestre».
No entanto, para muitas religiões antigas, esses lugares obscuros e misteriosos – galerias subterrâneas e cavernas – não são lugares de condenação definitiva, mas lugares de passagem para aqueles que vencem as provas, e um meio de ascensão para os lugares superiores, celestiais, onde reina a luz. Os Mistérios (de Elêusis, por exemplo) eram «cerimónias rituais no termo das quais um contacto fulgurante com o divino levava à experiência pessoal de uma promessa de salvação no além». Esses lugares subterrâneos, particularmente as grutas, são também, como muito bem refere Naomi Miller, na linha destas antigas tradições, verdadeiros santuários ou Cavernas Celestiais, nome do livro de sua autoria, Heavenly Caves, dedicado às «grutas dos jardins».
Numa tradição muito posterior, a do Rosacrucianismo alquímico, nascido no século XVII, pode dizer-se que «O Homem, para se regenerar, deve descer ao mundo subterrâneo. Lá, ele encontrará o sujeito primordial indicado por VITRIOL («Visita o Interior da Terra e pela Rectificação, ou purificação, encontrarás a Pedra Oculta»)».
Este tema da descida aos mundos subterrâneos e da ascensão aos mundos superiores está, de facto, presente na tradição espiritual da Humanidade desde as religiões primitivas, como por exemplo, o xamanismo, já que o xamã faz as suas «viagens» entre esses dois mundos. Como escreve Mircea Eliade na sua obra de referência Le Chamanisme et les techniques archaiques de l’extase, citado, muito a propósito, por Jean-Pierre Bayard, «a ponte (ou a corda) que permite ao herói atravessar o rio infernal, a personagem benévola, o animal guardião da ponte, participam nos motivos clássicos da descida aos infernos, mito que encontramos em todas as civilizações». Na Regaleira existe, depois de sair da galeria subterrânea que vem do fundo do Poço Iniciático, uma ponte sobre o lago, com as pedras à superfície, lago que era alimentado pelas águas que caíam de uma cascata, águas essas que é preciso atravessar para se ascender aos mundos luminosos.
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Neste contexto em que pretendemos apoiar a nossa interpretação por meio de passagens de especialistas de Dante, do esoterismo e das iniciações — sejam eles académicos ou outros estudiosos, não resistimos a citar uma passagem do Inferno da Dan Brown, autor por vezes provocatório e que nem sempre sigo em todos os detalhes:
«Retratada aqui por Botticelli, a visão horrenda que Dante tinha do Inferno era idealizada como um funil subterrâneo de sofrimento – uma desditosa paisagem de fogo, enxofre, dejectos, monstros e o próprio Satanás à espera, no seu centro. O poço era idealizado com nove níveis distintos, os Nove Círculos do Inferno, onde os pecadores eram lançados de acordo com a gravidade do seu pecado. Perto do topo, os luxuriosos, ou “malfeitores carnais”, eram fustigados e atirados de um lado para o outro por um vendaval eterno, símbolo da sua incapacidade de controlar o desejo. Por baixo deles, os gulosos eram obrigados a deitar-se de barriga para baixo num ignóbil pântano de dejectos, de boca cheia com o produto dos seus excessos. Mais fundo ainda, os hereges estavam presos em caixões em chamas, condenados ao fogo eterno. E assim sucessivamente, tornando-se cada vez pior à medida que se descia.» Dan Brown, Inferno (Bertrand Editora, Lisboa 2013, págs. 84-85)
B — O 515 de Dante
É altura de abordar, embora rapidamente outro tema de Dante, a saber, o enigmático 515 que surge no Purgatório como uma entidade física, como Henrique de Luxemburgo — ou metafísica, segundo alguns, como veremos de seguida — que vem regenerar a cristandade em crise, como afirmava a esperança dos gibelinos, partido cristão a que Dante aderiu (com outros intelectuais como Cavalcanti).
O tema de uma Idade futura de realização dos ideais do Cristianismo — a Terceira Idade do Espírito Santo, miticamente equivalente ao Quinto Império, perene Império do Espírito, com raiz no bíblico Livro de Daniel —, está presente na Regaleira. Para além da referência ao culto popular do Espírito Santo existente numa escultura da fachada sul do Palácio existe outra referência no «515» de Dante, por mim aí identificado — como escreve o Mestre Lima de Freitas na sua obra «515» — O Lugar do Espelho, Lisboa, Hugin Editores, 1998, p. 384: «José Manuel Anes que descobriu este objecto extraordinário…apressou-se a comunicar o seu achado».
O «515» de Dante está pois presente na Quinta de Carvalho Monteiro em dois bancos dos jardins e outro no interior do Palácio, contendo todos a estrutura simétrica 5 – 1 – 5, em que o «1» é a figura central, a dama com tocha, jovem, ou «Monteiro», e ambos os «5»
são as ameias, ou morelões, que ladeiam essa figura central — havendo ainda, uma sexta ameia ou morelão, de um e de outro lado, mas numa linha posterior, como que emparedada, sugerindo o 666 que o 515 vem combater e dominar.
Para Lima de Freitas — que interpretou sabiamente, e com grande erudição, este símbolo, o «515» ou Il messo di Dio («O Mensageiro de Deus») —, o «515» é mais o Paracleto, ou Consolador, do que um Dux, um chefe militar gibelino – os gibelinos, contrariamente aos guelfos, defendiam que o Papa não devia ter poder temporal, bastando-lhe o poder espiritual — gibelinos que desejavam conduzir os cristãos ao retorno à pureza original do cristianismo Este «515» da Regaleira é também, il velttro, o galgo que é referido na Divina Comédia, rápido no seu auxílio — e num dos bancos do jardim estão dois galgos, ladeando uma figura feminina, provavelmente Beatriz, que está no centro do banco/515, ela que foi a condutora/iniciadora de Dante em parte do seu percurso iniciático, tal como Virgílio também o foi.
O Mensageiro de Deus/515 anuncia, de alguma maneira, a Terceira Idade, a do «Evangelho Eterno», do abade calabrês, heterodoxo e milenarista, Joaquim de Fiore. Mensageiro veloz no seu auxílio à Cristandade em crise, no entender do gibelino Dante, o «515», que, aqui na Quinta da Regaleira, surge por três vezes — três, ou a doutrina joaquimita não fosse trinitária — em três esculturas, duas nos bancos do jardim, ladeando o operático lago inferior, junto ao muro da estrada, e uma no Palácio, na «sala da caça» onde o proprietário (Carvalho) Monteiro, surge como o «mensageiro de Deus». Recorde-se que, na doutrina do franciscano «espiritual» Joaquim de Fiore, a Idade do Espírito Santo seria a Terceira Idade, a da Liberdade e a do Evangelho Eterno, que iria surgir a seguir à Idade do Filho, a segunda, a do Amor, representada pelo Novo Testamento, e à antiga Idade do Pai, a primeira, a da Justiça, representada pelo Antigo Testamento.
O banco da Quinta da Regaleira com o 515 d’A Divina Comédia de Dante — il veltro, o galgo — com a Beatriz a meio, separada de dois galgos (um macho e outro fêmea) por cinco ameias, de cada lado; sendo o 515 il messo di Dio, o mensageiro de Deus, é o anunciador da «Idade do Espírito Santo», tema heterodoxo caro aos templários e aos seus sucessores da Fede Santa, à qual pertencia Dante.
Gruta de Elêusis onde, miticamente, Perséfone, filha de Deméter, foi raptada por Plutão.
Situada no complexo dos Mistérios, observa-se as fundações de um pequeno templo dedicado à divindade dos infernos, Plutão. Parece, pois, evidente que a concepção religiosa do mundo que preside à Regaleira assenta, para além do Paganismo, no Cristianismo, mas num Cristianismo milenarista, escatológico, isto é, que se refere ao Fim dos tempos, e Gnóstico, ao qual estão associados o Templarismo e o Culto do Espírito Santo.
Conclusão
A Quinta da Regaleira, com os seus jardins, poços, grutas e capela, sugere, pois, fortemente, um percurso iniciático (simbólico ou real) que une, de um modo coerente e evolutivo, os diversos locais simbólicos e míticos nela presentes, na perspectiva da Iniciação aos Mistérios em geral e de diversas iniciações esotéricas em particular: todas as que seguem esse «arquétipo», isto é, o de um caminho que vai das Trevas à Luz.
Sendo a inspiração literária principal a da Divina Comédia de Dante, isto não exclui outras tradições religiosas, literárias e iniciáticas que estão presentes na obra de Carvalho Monteiro e de Luigi Manini, antes a solução arquitectónica da Regaleira oferece uma estrutura universal onde assentam todas as outras referências, como referi anteriormente no meu livro Os jardins iniciáticos da Quinta da Regaleira (Ésquilo, 2ª. Ed., 2006)
José Manuel Anes
José Manuel Anes é autor e coautor de cerca de 30 livros e artigos no domínio das espiritualidades e religiosidades alternativas, de entre os quais se referem “Re-criações herméticas I e II” (1996, 1997), ambos na Hugin eds. – e que serão reeditados brevemente na editoria Zéfiro -, “Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos” (3ª. Ed. 2006), “Um outro olhar – a face esotérica da cultura portuguesa (2006), ” “Os jardins iniciáticos da Quinta da Regaleira” (1ª. Ed. 2004, 2ª. Ed. 2006), “Mozart e os mistérios iniciáticos” (2007), “Alquimia, os alquimistas contemporâneos e os novos movimentos religiosos” (2009) – resumo da sua Tese de Doutoramento -, ”Guia simbólico da Quinta da Regaleira” (2010), todos na Ésquilo e na Eranos que lhe sucedeu e ainda “Uma Introdução ao Esoterismo Ocidental (Arranha Céus, 2ª. Edição, 2014)