Logo que completou dezoito anos, Anthony Botelho ficou sujeito a todas as obrigações de um norte-americano.
Em cima da cómoda da Avó, está ainda uma fotografia dessa ocasião que o mostra entre amigos. Cantavam: Happy birthday to you…
Nascera ali, na Ilha. E chegara aos vinte e dois meses a Lynn, Massachusetts.
Foi à escola. Primary and middle school. Depois, fez um trimestre na Vocational High School. E desistiu.
Como gostava de aceres quase tanto quanto do mar, propôs-se para guarda na reserva de Lynn Woods.
Logo, porém, foi chamado para o Exército. Estava-se em 2001. Junho de 2001.
Em Dezembro, com os votos de Merry Cristhmas, a Avó recebeu outra fotografia. Tony era agora um soltado de cabelo cortado rente.
A Avó chorou. E foi entregar o retrato ao Senhor Santo Cristo, pedindo: “Que ele volte para casa depressa e salvo.”
À Ilha só voltaria depois do Afeganistão. Desmobilizado e com a esperança de se ir curando dos males da guerra.
O boné!
Levava-o uma rabanada de vento. Vento de sudoeste que se levantara ao largo e começava a virara as pranchas de windsurf.
A pala do boné, em forma de telha, foi encaixar nas raízes de um metrosídero. Tony correu para o apanhar.
Apanhou.
Voltou a sentar-se na beira do muro. Acendeu um, dois cigarros.
Tinha-se-lhe acabado o tabaco americano, e agora fumava maços de Estrela.
Para a Avó, Tony era ainda um rapazito.
Quando a Fábrica do Peixe apitava, às oito da manhã, ela entreabria a porta do quarto. Entrava.
– Que Deus te abençoe e dê um bom dia, Tony.
Trazia-lhe café com leite, bolo lêvedo, compota de araçá.
Perguntava, às vezes, como fora no Afeganistão. Dormia vestido? E comer, comia enquanto disparava? Custara-lhe muito a passar aquele tempo?
Não respondia.
Ainda em Lynn, a Mãe também quisera saber dos combates. Das emboscadas. Do zigzaguear, mochila às costas e arma na mão, pelos trilhos das montanhas.
O Pai nunca mostrara interesse pelo assunto. Tal como Tony, cumprira serviço militar obrigatório. Fora mobilizado e fizera uma comissão de dois anos, na Guiné. Sabia o que era a guerra.
Acabava o bolo. Punha o tabuleiro ao lado da cama, tornava a adormecer.
Dormia até tarde, almoçava e saía. Passava as tardes sentado no quebra-mar.
Ali estava ele, agora.
Vento cada vez mais forte. Os garajaus à procura de abrigo, em terra.
A força das correntes arrastava para Sul os bocados das pranchas de surf. Ramos de arbustos. Destroços de cadeiras das esplanadas.
Diante do mar, Tony lembrava-se do leito quase seco do rio Kaboul. Pelas margens, homens de albornoz arregaçado fazendo as necessidades. Limpando o rabo a um calhau.
Repulsa.
Depois, a progressão para Kandahar. Altitude, aridez.
“Quem me dera Lynn Woods”, pensava ao princípio. Depois, deixou de pensar.
Atravessavam povoações. Dir-se-iam desertas quase todas. Revistavam as casas e davam com alguns velhos que lhes ofereciam os cachimbos.
As mulheres e as raparigas invisíveis. Escondidas.
As recomendações do Comando eram: “Não olhem!… Não toquem nestas mulheres!”. “O mundo delas não é o vosso!”.
Abatessem-nas a tiro. Mas não lhes tocassem.
“Devem ignorá-las… Têm de as ignorar!”
Não ignorava.
Desejava.
Desejou até se esvair, esquecendo que tinha pés e pernas. Cintura. Olhos, boca.
Um grupo de raparigas atravessou a rua. Uma excursão.
Vinham quase todas de calções, duas ou três de saia. O vento trespassava-lhes as blusas. Desalinhava-lhes o cabelo.
Falavam português. No entanto, Tony mal as entendia. Que pronúncia aquela, tão diferente da toada das Ilhas?
Lisboa! E gente de Lisboa, era rara no Massachusetts, onde ele quase sempre vivera.
Passaram por ele as raparigas, sem o abalar. Continuaram, sob as copas dos metrosíderos.
“Quisesse o Senhor Santo Cristo que tu escolhesses noiva aqui, na Ilha!”, pedia a Avó.
E Tony poderia ter escolhido quem quisesse. Agradava a todas.
De facto, era atraente e sabia-se que fora um bom soldado. Herói. Embora não se deixasse de admitir algum exagero.
Por isso elas esmeravam-se. Umas exibindo virtude, outras atrevimento.
Se alguma o conquistasse, segui-lo-ia no regresso a Lynn. Missis Botelho. Com direito a tudo o que de bom havia na América.
E seria assim tão bom o que lá havia? Nas Ilhas dizia-se que sim. Melhor que no Brasil. Ou Canadá.
Parecia no entanto que nenhuma mulher, solteira ou casada, seduzia Anthony Botelho.
– Diga-me…
Uma das excursionistas de Lisboa desertara do grupo. Voltara atrás e perguntava:
-…não se pode descer por aqui, até lá abaixo?
Descer entre rochas, até à nesga de areia escura deixada pelo mar?!
Tony pousou o cigarro na borda do muro e levantou-se.
Havia um trilho, sim senhora. Podia-se descer.
-…mas olhe que tem perigo.
– Por onde é?
Tony apontou.
Ela começou a descer. Voava-lhe a saia, escorregavam-lhe as sandálias. Desequilibrava-se.
– Espere aí, miss!…
Foi ajudá-la.
Os dois de pedra em pedra. Olhos baixos. Ele a dizer-lhe onde havia de pôr os pés. A dar-lhe a mão.
– E pronto!… Cá estamos.
Perguntou-lhe o nome.
Xana.
O mar agitado, ao largo. E quase manso, na borda da areia.
Xana descalçou-se. Agarrou nas pontas da saia e entrou na água. Estava fria, picava-lhe a planta dos pés, salpicava-lhe as pernas. E uma onda mais forte molhou-a acima dos joelhos.
Então, veio para junto de um penedo e despiu-se.
Tony estava sentado no chão. Viu-a prender a roupa com seixos. Ir nua para o mar.
– É tão bom… Tão bom!
Virou-se para ele. A água pelo meio das coxas. Mamilos arrepiados, o escuro de entre pernas em realce.
– Venha! – chamou.
Desembaraçou-se das sapatilhas. Tshirt, jeans, boxers.
Foi até ela e agarrou-a pelo cabelo. Beijou-a, fazendo-lhe sentir a barba, a língua, os dentes. Toda a dureza do seu corpo.
Depois levou-lhe a cabeça até à água. Fê-la dobrar-se. Mergulhar.
Ela debatia-se. Debateu-se. Ainda levantou os braços.
Tony não cedeu.
Quando a sentiu inerte, enlaçou-a contra si. Nadou para o largo.
Levou-os a corrente Sul.
A invencível corrente que passa entre as Ilhas. E arrasta para a costa de África os restos de todos os naufrágios.
Filomena Marona Beja
Dezembro/ 2014