Marco de Oliveira Borges fala-nos da História do litoral de Sintra

Marco Oliveira Borges nasceu em Cascais. É licenciado em História, pós-graduado em História dos Descobrimentos e da Expansão e mestre em História Marítima pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo desenvolvido uma tese intitulada O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista: apoio à navegação e defesa costeira (2012), aprovada com 19 valores.

 

Fez parte do quadro de honra da Universidade de Lisboa ao ser-lhe atribuída uma bolsa de estudo por mérito pelo terceiro valor mais alto (18.8, ex aequo) das médias de todos os alunos que desempenharam actividade (licenciatura/mestrado) no ano lectivo 2011/2012.

Actualmente, é bolseiro de doutoramento pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/52282/2013), estando a desenvolver uma tese no âmbito do Programa Inter-Universitário de Doutoramento em História (PIUDHist), Mudança e Continuidade num Mundo Global, relacionada com o trajecto final da carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640).

É investigador associado do Centro de História da Universidade de Lisboa, membro correspondente da Academia de Marinha, membro da Associação Ibérica de História Militar e da International Network_Small Cities in Time (In_Scit). A sua investigação principal incide nas temáticas relativas aos Descobrimentos e à Expansão Europeia dos séculos XV-XVII.

Tem-se dedicado igualmente ao estudo da história marítima dos concelhos de Mafra, Sintra, Cascais e Oeiras entre a Antiguidade e a Idade Moderna, bem como ao estudo da defesa costeira no distrito (kura) de Lisboa durante o Período Islâmico. Destacando as paisagens culturais marítimas, no seu trabalho sobressai uma metodologia interdisciplinar com forte recurso à geografia, à arqueologia costeira e subaquática.

Os resultados das suas investigações têm sido apresentados em encontros científicos de âmbito nacional e internacional, bem como em artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras da especialidade.

 

O Marco Oliveira Borges tem vindo a dedicar-se à investigação na área da História Marítima. Quer falar-nos um pouco sobre a sua obra e percurso académico?

Embora o gosto pela História e a Arqueologia tenha surgido em inícios da década de 1990, enquanto miúdo e através dos filmes do Indiana Jones e de algumas sondagens arqueológicas a que fui assistindo no centro histórico de Cascais, somente em 2007 comecei o meu percurso no campo da investigação histórica.  Isso teve lugar pela altura do início da licenciatura em História, sendo que desde logo quis aplicar os conhecimentos teóricos e a metodologia que estava a ser aprendida.

Depois de alguns trabalhos para diferentes cadeiras da licenciatura, no Verão de 2008 comecei por tentar saber como funcionava o porto de Cascais durante a Expansão Marítima Portuguesa (séculos XV-XVI). O facto de morar nesta vila e de ter o mar como grande referência e inspiração foram os motivos iniciais, mas a partir dessas investigações fui alargando horizontes para uma área territorial mais vasta, abarcando Sintra, Mafra, assim como a faixa costeira entre Oeiras e Lisboa.

Ao mesmo tempo, devido às ligações, à complexidade e às interrogações que iam surgindo, fui recuando a cronologia de trabalho, acabando por chegar ao Período Islâmico e até mesmo à Antiguidade. Quando dei por mim estava a estudar assuntos relacionados com povoamento costeiro, rotas marítimas, fortificações, faróis, portos, ancoradouros, naufrágios, topónimos, etc., numa cronologia que ia desde a chegada dos fenícios (século IX a.C.) à área do Baixo Vale do Tejo, culminando, já no século XVII, sobretudo com temas relacionados com a carreira da Índia.

No fundo, tudo isto ia ao encontro daquilo que é a chamada Paisagem Cultural Marítima, se bem que só tenha tido conhecimento desta noção posteriormente. Estas investigações levavam naturalmente a que se recorresse também à arqueologia (terrestre e subaquática) e ao conhecimento geográfico, seguindo-se uma metodologia interdisciplinar e em longuíssima duração.

Assim, nos últimos anos tenho participado em diversos eventos científicos de carácter nacional e internacional, onde têm sido apresentados os principais resultados das investigações em curso e discutidos assuntos com diversos especialistas. Tenho publicado igualmente artigos em revistas nacionais e estrangeiras da especialidade. Fiz ainda uma tese de mestrado sobre o porto de Cascais durante o século XV, assim como estou à espera de defender a minha tese de doutoramento

 

Sintra e Cascais têm tido uma particular atenção no seu trabalho. No que a Sintra concerne, que tipo de fortificações defensivas existiram neste concelho e em que épocas? Há vestígios relevantes?

Destaco as fortificações edificadas junto à costa, ainda que o castelo dos Mouros, ao que parece tendo tido uma primeira fase de construção ainda no século IX, tivesse um papel importante como posto de vigia e de alerta que anunciava a chegada de navios inimigos. Importa ter em conta que este é o século em que os vikings começaram as suas investidas pela costa ocidental da Península Ibérica.

Igualmente do tempo de ocupação islâmica existe uma estrutura que está a ser escavada no Alto da Vigia, a qual tem sido apresentada como sendo um ribat. Este termo, para além de estar associado ao exercer da espiritualidade própria da guerra religiosa, arquitectonicamente pode designar uma estrutura fortificada. No caso de Sintra, entre diferentes aspectos, o ribat teria um papel importante para acolher os homens que ajudariam a defender o principal acesso naval ao interior de Sintra, ou seja, a área da praia das Maçãs.

No entanto, alguns investigadores crêem que a estrutura em causa não será um ribat, mas sim uma rabita, uma pequena mesquita. Somente o desenrolar dos trabalhos arqueológicos poderá ajudar a compreender melhor o assunto. Para a Idade Moderna refira-se o forte de Santa Maria do Magoito e o forte de Nossa Senhora da Roca.

Este último, construído, ao que parece, algures após 1640, foi edificado com o intuito de afastar os corsários e piratas que se aproximavam da enseada de Assentiz e imediações, junto ao cabo da Roca, para atacarem navios. Porém, como estava num sítio muito alto, foi sendo reconhecido como tendo pouca utilidade no disparo de artilharia para fazer face à aproximação de navios inimigos.

 

Fig. 1 – Vista parcial para a área da enseada de Assentiz e local, onde foi edificado o forte de Nossa Senhora da Roca.

 

Um tema que tem vindo a merecer interesse dos investigadores é o da navegabilidade do rio de Colares, de Galamares, ou das Maçãs, consoante os autores. O que nos pode dizer sobre esse tema? É verdade terem nórdicos subido esse rio no período das cruzadas, a caminho da Terra Santa?

A navegabilidade do esteiro de Colares é um tema de grande relevo para a História marítima de Sintra, acabando, de uma forma geral, por ser mais um dos casos de antigos locais da costa portuguesa outrora navegáveis. À semelhança do que aconteceu no vale do rio Lizandro (Mafra), antigamente o mar entrava para o interior do território e permitia que embarcações de pequeno calado por ali penetrassem.

Aproveitando essa situação, é muito provável que, em ambos os casos, no Período Romano fossem escoadas por ali mercadorias agrícolas (vinho, azeite, frutos e produtos hortícolas) para Olisipo, assim como no retorno as embarcações locais trariam os produtos de importação que chegavam àquela cidade portuária. Não era apenas por terra que se estabelecia contacto comercial com a Lisboa romana. Aliás, atendendo a alguns dados arqueológicos obtidos em Sintra, é possível que ainda antes do Período Romano o esteiro de Colares já visse chegar mercadorias vindas de outras partes, nomeadamente trazidas por povos do Mediterrâneo.

Esta área interior sintrense terá sido navegada pelo menos até ao século XII. Em 1109, Sigurd e as suas forças, seguindo a caminho da Terra Santa, atacaram Sintra, sendo muito provável que tenham acedido ao interior navegando pelo braço de mar que invadia o vale de Colares. O baixo calado dos navios nórdicos, associado ao momento de preia-mar, teria permitido o acesso a Sintra.

Todavia, subsistem diversas dúvidas sobre os contornos do ataque de Sigurd, não se podendo fiar literalmente nas sagas nórdicas que relatam este evento, visto que foram escritas muito tempo depois do ocorrido e para enaltecer os feitos nórdicos. Em séculos mais recentes, o mar continuou a invadir parcialmente o vale de Colares, ainda que sem haver navegação para o interior.

Fig. 2 – Praia das Maçãs com água do mar acumulada no seu interior, formando uma lagoa (início do século XX).

 

A costa de Sintra, apesar de acidentada, foi sempre palco para corsários e piratas. Que investidas foram mais frequentes e como foram combatidas?

Os primeiros acontecimentos conhecidos estiveram associados ao corso francês, entre 1520 e 1537, se bem que alguns não tenham ocorrido propriamente em Sintra, mas umas léguas mais ao largo, aparecendo o cabo da Roca como local de referência nas fontes históricas. Foi a presença de inimigos vindos do Norte de África que se notabilizou na costa de Sintra, sendo célebre o ataque à naveta Nossa Senhora da Conceição (1637).

Num outro caso, ocorrido em Maio de 1620, Lisboa informou o Porto de que 14 navios corsários norte-africanos tinham sido avistados ao largo do cabo da Roca. Este era um dos locais de aproximação à costa para os navios que vinham dos Açores, onde se incluíam os que vinham ricamente carregados da Índia, do Brasil, de África e de outras partes, pelo que acabava por ter grande procura. Para fazer face a estes salteadores de mares e proteger os navios comerciais, a Coroa enviava a armada da costa e a armada das ilhas, que chegaram a ter o auxílio das forças navais espanholas.

A primeira agia na costa portuguesa, enquanto que a outra deslocava-se sobretudo aos Açores. Sabe-se que o cabo da Roca era um dos pontos geográficos de grande importância para estas armadas, que ali actuavam à procura inimigos. Em 1631, por exemplo, um navio corsário de Argel foi tomado no cabo da Roca por 6 galés espanholas que faziam parte da armada da costa.

 

Um tema que tem tido pouca atenção é o do chamado Castelo de Colares. Quando foi construído e quais as suas finalidades?

A lenda da fundação de Colares, dada a conhecer por João de Barros em 1522, remete para a existência de um castelo edificado durante o Período Islâmico naquela área. Apesar de essa história ser narrada num tom fantasiado, é possível que exista algum fundo de verdade, tendo sido passado por transmissão oral ao longo dos séculos, ou através de alguma obra desaparecida, pelo que em Colares poderá mesmo ter existido um dos dois castelos que os autores medievais muçulmanos referiam existir em Sintra.

Em todo o caso, como explicou Maria Teresa Caetano, o local onde poderá ter sido erguida essa suposta fortificação sofreu várias alterações ao longo dos séculos, não tendo sido possível, até ao momento, confirmar vestígios da sua antiga existência. Ainda assim, seguindo essa possibilidade, o castelo teria sido estrategicamente construído numa área elevada, ou seja, na vila velha colarense, de onde havia uma visão privilegiada para o porto local e para o esteiro de mar que invadia o vale de Colares, havendo ainda contacto visual com o castelo dos Mouros.

Na vila velha de Colares foram exumados alguns dados arqueológicos que confirmam a presença muçulmana naquele espaço pelo menos desde o século X.

 

O imaginário popular relata míticos naufrágios no Cabo da Roca e litoral de Sintra. Quer falar-nos de algum caso mais impressivo que aí tenha ocorrido?

Para o caso de Sintra, o naufrágio que tenho mais fresco na memória é o da nau Santa Catarina de Ribamar, ocorrido no início de Novembro de 1636. Vinda da Índia e tendo como destino Lisboa, naufragou nas proximidades do cabo da Roca, em pleno temporal e durante a noite. Salvaram-se apenas perto de 20 pessoas, entre as quais 6 escravos. É um número bastante reduzido, visto que viriam a bordo c. 470.

Sabe-se que nos dias seguintes foram enviados oficiais e funcionários da Casa da Índia para a parte costeira onde se deu o acidente, no sentido de se repartirem pelas praias para enterrarem os mortos e fazerem um inventário das fazendas e materiais que dessem à costa. Embora por essa altura tenha havido vontade de se tentar recuperar igualmente a artilharia da nau, ficou expresso que somente no Verão isso seria possível.

Poderia referir outros naufrágios ocorridos na costa de Sintra, como os que tiveram lugar em 1147, embora para este ano as informações sejam muito escassas, mas o que importa destacar é o enorme potencial da costa sintrense no que respeita ao património arqueológico subaquático. Daí a importância de se criar um projecto de investigação nesse âmbito. Ainda que seja difícil de realizar um trabalho sistemático de arqueologia subaquática na costa de Sintra, não é de todo impossível.

 

Que vestígios de fortificações militares ou de defesa costeira podemos encontrar em Sintra? É possível a sua recuperação e musealização?

Entre as fortificações atrás referidas, o forte de Santa Maria de Magoito é o único que está em bom estado de conservação. Do forte de Nossa Senhora da Roca, edificado num sítio de acesso bastante difícil e perigoso, já só subsistem escassos vestígios. Por sua vez, do suposto ribat indicado ainda só foi escavada uma pequena parte. Porém, está integrado num espaço que será alvo de musealização pela equipa do MASMO.

É de referir igualmente a possível existência de uma fortificação nas proximidades da Ponta do Alconchel, tal como indica um mapa de 1756. A Ponta do Alconchel é um pequeno promontório que separa a praia Pequena da praia Grande, se bem que, por vezes, o topónimo seja indicado erroneamente como estando integrado na área do Alto da Vigia.

A possível existência desta fortificação é pouco conhecida, não estando comprovada arqueologicamente. Hoje em dia, existe um restaurante e outras construções na área da Ponta do Alconchel, tendo aquela área sido fortemente modificada pela acção do homem. Finalmente, há que referir a elaboração de projectos para a edificação de uma bateria na margem Sul da ribeira de Colares, na primeira metade do século XIX, mas cuja construção poderá sido abandonada quando já estava em execução, ou talvez nem sequer tenha tido início.

Neste local existem edifícios recentes em ruínas, um deles um miradouro e outro um restaurante que estava activo na segunda metade do século XX, crendo-se que os mesmos podem ter sido construídos sob plataformas sustentadas por muros que podem estar relacionados com a construção parcial daquela estrutura militar. Não menos importantes são os topónimos que indicam a existência de antigas estruturas ligadas à militarização e à defesa costeira na costa de Sintra, caso de Vigia da Roca, Alto da Vigia, Cruzeiro do Facho, Atalaia, Azóia, etc.

Fig. 3 – Pormenor da área costeira de Colares. Destaque para a referida fortificação da área da Ponta do Alconchel. Fonte: M. Bellin, Plan du port de Lisbonne et des costes voisines, [Paris], 1756 (BnF).

Em que está a trabalhar neste momento?

Neste momento estou a desenvolver dois artigos para publicar em revistas estrangeiras (França e USA), enquanto que aguardo pela publicação de outros a nível nacional. Paralelamente, continuo a publicar pequenos artigos de divulgação histórica no meu blog dedicado a História de Sintra e Cascais, sendo que em breve começarei também a delinear a realização de pequenos documentários para publicação na Internet. Além disso, tenho elaborada uma obra sobre Sintra e Cascais, mas que espera por edição.

Por fim, estou a aguardar para fazer a defesa da minha tese de doutoramento, relacionada com a carreira da Índia, a qual também acaba por trazer várias novidades para a História de Sintra.

Share Button
Scroll to Top