Figura incontornável do panorama cultural sintrense, falámos com Jozé Sabugo, a alma e a voz da Casa das Cenas, um dos grupos de teatro e intervenção cultural há mais anos em atividade no concelho de Sintra.
Como e quando surgiu o projeto da Casa das Cenas, e quem foram os seus dinamizadores? Falem-nos um pouco do vosso percurso.
A Casa das Cenas nasce a partir do Grupo ACUSA (Actividades Culturais do Sabugo) num Atelier/Barracão, no Centro Internacional de Escultura em Pêro Pinheiro, em 1997; feito á altura em “Teatro Liliputiano” nas palavras do critico de Teatro Fernando Midões. Poucos meses depois passa a Associação juvenil, e o Grupo ACUSA, criado em 1993, na Piedade da Serra, Sabugo, Freguesia de Almargem do Bispo, começa a desenhar o seu futuro, numa atitude profissional, fruto da irreverência e dinamismo de um grupo de jovens (Cláudio de Brito, Maria José Miranda, Isabel Leal, Manuela Caldeira, Tó Zé Dias, Rui Januário, Lynne Motta, Carlos Vivo, Luís Carvalho, Nuno Januário, Fernando Carvalho e Jozé Sabugo), que tinham o Teatro e a Educação como a maior motivação para trabalhar em e com as comunidades da freguesia de Almargem do Bispo. Impossibilitados de continuarmos no Atelier/Barracão, deambulamos por outras freguesias, até 2009, aquando da organização de uma retrospetiva dos trabalhos artísticos de Maria Almira Medina. Pelo caminho, solidificamos o projeto Hora do Conto – Animação do Livro e da Leitura, criado em 1995, na Biblioteca Municipal no Palácio Valenças, em Sintra, levamos á cena, Gil Vicente, Theckov, Almeida Garrett, Léon Chancharel, Strindberg, Vasco Mendonça Alves, José Jorge Letria, Tom Maccay, Cláudio de Brito, Manuel Alegre, Alice Vieira, Maria Almira Medina, Cláudia Ferreira, Jacinto Lucas Pires, Jozé Sabugo, Hans Christhian Andersen, Irmãos Grimm, Ionnesco. (ensaiamos Vaclav Havel e Karol Józef Wojtyla), entre outros. Organizamos Festas e Festivais Sócio-culturais, Tertúlias de Poesia, Encontros de Parcerias, de Educação pela Arte, de Magia e Promenições, Edtamos Livros e CDs, criamos Oficinas de Teatro, de Contadores de Histórias, da Terra, entre outras iniciativas sempre em parcerias.
O diálogo com a Comunidades é revelador de realidades distintas? Em que pode isso influenciar o vosso trabalho enquanto atores e encenadores?
A Casa das Cenas, faz este ano 25 anos. É uma associação que potencia a criatividade e a interculturalidade. Gostamos de dizer que é uma mais valia para os currículos dos alunos das escolas públicas e privadas, contribuindo para a valorização e desenvolvimento pessoal e sociocultural, esclarecendo as famílias, na suas tomadas de decisão quanto aos seus projetos de vida, individual ou familiar, bem como, uma porta para os seus intervenientes/interlocutores, interagirem e aprenderem, nas múltiplas expressões da comunidade. Em suma, um inestimável contributo para maior conhecimento e interação com e na comunidade. Neste sentido e perspetiva, respondemos e promovemos ações de formação, reflexão, desenvolvimento pessoal, enquanto animadores, atores/encenadores, educadores, criadores, investigadores e produtores, quer seja, para reflexão interna e/ou externa. O foco é a Educação pela Arte de Preservar o Património Material e Imaterial. O ponto de partida é a CIÊNCIA da Oralidade, da Música, da Dança e dos Autores. As ferramentas mais usadas são os Livros; fiéis depositários de pensamento criativo e critico. Para haver diálogo em e com as comunidades é preciso vários mediadores ( Instituições publicas, Sociedade Civil e Pessoas) para que possamos intervir na realidade e necessidades das Comunidades e as mesmas Comunidades possam também vir a ser uma interajuda como atores de mudança com educação e arte, afim de uma aprendizagem mútua de desenvolvimento pessoal e comunitário. E quando essas pontes acontecem, ( criação de parcerias) ambos podemos ser influenciados, contaminados, diria melhor, todos podemos nos valorizar e crescer como pessoas e profissionais, criando no meio envolvente mais pontes e oportunidades.
Têm algum referencial estético ou autores de culto que ainda gostassem de apresentar?
O nosso principal referencial estético e de culto é a cultura Saloia e todos os autores/criadores humanistas, tais como a Maria Almira Medina. Como diria o Professor Agostinho da Silva “Os povos serão cultos na medida em que entre eles crescer o número dos que se negam a aceitar qualquer benefício dos que podem … dos que acima de tudo defendem o direito de pensar e de ser digno “.
Em vossa opinião, quais são as principais virtudes e carências do vosso trabalho?
Na minha opinião, se há virtude no que fazemos, é continuar a fazer acontecer para poder partilhar valores multiculturais em defesa do Património Material e Imaterial, minimizando este estado de precaridade e carência que vivemos e sempre cheio de vontade de desenvolvermos projetos nas Artes Performativas, Arte Publica, Educação Ambiental para uma valorização e respeito pela Paisagem, Património e Cultura nas várias comunidades (entre os que fazem e os que participam ou interagem).
Há uma linguagem e uma dramaturgia próprios dos territórios abordados, nomeadamente tendo em conta públicos urbanos ou mais ruralizados?
Desconheço se há um publico Urbano e um mais ruralizado. O publico de Teatro de Sintra ou o que vem a Sintra é um publico que vai a Lisboa e/ou a Almada. Nós (companhias de Teatro) também somos publico e gostamos de ir ver o que se anda a fazer nas outras companhias. Há mais de trinta anos que ando com esta linguagem, que é o mesmo que dizer, que todos as companhias têm uma dramaturgia própria ( algumas ainda andam á procura ) basta estarem num território diferente, objetivos diferentes e estarem atentos para não repetirem e diversificar o mais possível. E por isso é essencial termos a Plataforma dos Teatro de Sintra, a que se poderão no futuro, juntar a Dança e a Música, afim de trocarmos experiências, refletir no dizer e no fazer, para que a oferta cultural em Sintra seja a mais diversificada quanto ás suas linguagens e dramaturgias, para que crie oportunidades de acolher o maior numero de profissionais e amadores, criando programas de oferta cultural para todas as idades. É o ideal? Pensando agora, talvez seja.
“A Cultura e as Artes são mais uma “quintinha” onde só entram os que são convidados pelos outros que já lá estão”
Há uma literacia dramatúrgica no público português, e, nomeadamente um sentido crítico ou o espetador é sobremaneira passivo e consumidor de produtos culturais?
Se o afirma, ou pergunta, deve ter dados que eu desconheço. Posso dizer é que eu como espectador, tento usufruir, o mais possível de uma programação cultural associativa, apoiada (a maioria das vezes) pelos governos local e/ou central, de muita qualidade, para a exigência do público em geral. Creio que ainda estamos longe de ter em Portugal, um verdadeiro público consumidor de produtos culturais. A maioria das famílias ainda se debate diariamente com o problema de pagar as contas básicas, para poder pensar em ir ao teatro, ao cinema ou ver uma exposição. Segundo João Luís Silva, ” a taxa de analfabetismo real da população portuguesa anda nos 6%. A taxa de analfabetismo funcional anda nos 30%. O povo português é ignorante e intelectualmente preguiçoso. Só assim se entendem as taxas de audiência do lixo televisivo. Como em todas as áreas da nossa sociedade/comunidades, a Cultura e as Artes são mais uma “quintinha” onde só entram os que são convidados pelos outros que já lá estão e que já dominam o estilo há várias gerações. Há os criadores e os artistas. Não querendo generalizar, mas muitas vezes não trabalham para públicos, trabalham para si a para os da sua “tribo”. Como os jornalistas que escrevem para dentro da “classe”, assim o fazem criadores e artistas das mais variadas áreas. Os Artistas procuram “comprar” públicos com produtos “mastigados”. Os criativos por vezes, pela sua originalidade, só conseguem fazer interessar-se pelo seu trabalho, a franja de analfabetos funcionais e os poucos que são tão criativos e originais como eles. Para dar um exemplo, estou-me a recordar do filme “Branca de Neve” do João César Monteiro.
“É preciso garantir a sustentabilidade, do que se faz a partir do Associativismo sem fins lucrativos, que é a base para uma politica cultural”
Que políticas públicas podiam e deviam ser seguidas para sedimentar o gosto pela Cultura e pelo Teatro?
O gosto pela cultura e pelo teatro faz-se no seio familiar e principalmente nos primeiros anos de escola. Terá que haver uma maior valorização dos professores dos ensinos pré primário e primário. Aí é que está o grande potencial de mudança de paradigma da sociedade humana. É no ensino pré-primário e primário que se formam as personalidades dos seres humanos do futuro e se desenvolvem os princípios de respeito de uns pelos outros e pelo planeta. É nestas fases da vida que se semeiam as mais importantes sementes da paz e do amor. É necessária maior valorização dos professores destes níveis tanto dos que estão no ativo como dos que podem estar a ponderar enveredar por essa via profissional. É claro que tudo depende do meio onde estão territorialmente. Cada território tem as suas mais valias, as suas fragilidades e as suas politicas Culturais públicas, para responder politicamente correto. Nem sempre as mais valias, são potenciadas e nem sempre as fragilidades são mitigadas. Há competição entre as estruturas que tem orçamentos próprios e estruturas que dependem de candidaturas. Falta reconhecimento e mérito aos agentes culturais que valorizam e promovem o seu território (Sintra), partilham e criam dinâmicas dentro e fora do país. É preciso garantir a sustentabilidade, do que se faz a partir do Associativismo sem fins lucrativos, que é a base para uma politica cultural. Penso que bastava minimizar infoexclusão, a burocracia, taxas e licenças, criando condições para o equilíbrio e estabilidade económica, afim, de resolver os problemas diários de sobrevivência, zelando pela saúde mental e segurança dos intervenientes e do público em geral. Há que potenciar o que já se faz. Potencial existe, mas está no lodo das obrigações e deveres para com a família e estado ou/e indignado, adormecido, mal amparado e direcionado. desvalorizando as iniciativas socioculturais, a Cultura dos lugares, aldeias e vilas (património material e imaterial) e paradoxalmente sobrevalorizando o evento que é puro negócio. Basta ver o programa das Festas Anuais das Freguesias em geral; 99 % de entretenimento/comes e bebes, 0,5 % religioso/pagã e 0,5 % artes/ cultura/gastronomia/tradição. Deste modo, é quase impossível haver respostas dentro das próprias comunidades para se pensar e implementar politicas culturais, com base na Cultura Saloia e a Cultura Urbana com a tradição e a inovação no seu melhor.
Como está o estado da Arte do teatro em Sintra, nesta época de pós pandemia?
Refleti muito para dizer isto, e é com mágoa e esperança que o digo, porque vejo, ouço e sinto, há muito tempo nestas andanças, que a maioria dos presidentes e executivos de Junta, entre outros responsáveis políticos do concelho de Sintra, são raras as vezes que aceitam convites e/ou visitam os espaços dos grupos/agentes culturais para verem onde os mesmos trabalham e/ou criam; ou como cidadãos se veem em plateias para ver o que se faz no Teatro/Dança/Poesia no Concelho de Sintra. E ainda assim, com esse sentido de desreponsabilidade, continuam a opinar e decidir sem ouvirem os agentes culturais, agentes da educação, fazendo juízos de valor, comparando com outras necessidades básicas e elementares, jogando um jogo anti cultura. Diga-se em abono da verdade, que o presente presidente, o Sr. Basílio Horta, tem se esforçado, para minimizar os efeitos da pandemia e assim também acabar com o hábito de jogar o jogo, quase anti cultura, dos últimos vinte anos; juntando os agentes culturais e todas as associações interessadas do Teatro / Artes performativas e as Artes em geral, em Sintra, venham a ter mais espaço na agenda da politica cultural, a dignidade e as condições de trabalho que lhe pertencem por direito. Antes da pandemia, ainda pensei viver e ver, a terra onde nasci, como um baluarte dos Pintores, Escultores, Arquitetos das Tradições, Artes, Património e Ambiente. Durante a pandemia, notou-se a fragilidade dos profissionais do Teatro, das Artes Performativas, dos Autores, Criadores/Contadores de histórias; em suma da Criação, Fruição e Educação pela Arte. Agora, pós pandemia, sinto que, vamos ter que continuar a mostrar que também temos família, despesas como os normais cidadãos e muitos sonhos.
A Casa das Cenas e o Jozé Sabugo em particular têm-se dedicado a preservar a memória e obra de Maria Almira Medina. Qual o papel e o contributo que Maria Almira deu para a Cultura e para Sintra, em geral?
Maria Almira Medina? No que me diz respeito, foi um feliz acontecimento e tem sido uma viagem fantástica com o que aprendi e continuo a aprender por causa da sua enorme cultura. Tive o privilégio de conhecer a Maria Almira Medina nos meados dos anos oitenta por causa da indignação de uma amiga, Alexandra Silva, sobre o chafariz do Sabugo e de um artigo que escrevi para o Jornal de Sintra sobre a tal indignação. E desde esse artigo, publicado na rubrica Voz do Concelho, senti um carinho especial pela sua juventude e personalidade (eu vou á frente…) reconhecendo em mim capacidades e valores que eu próprio não tinha consciência e que a partir desse artigo, alavancaram e sedimentaram uma amizade. Só ao virar do século, em convívio quase diário, é que me apercebi, da sua dimensão humana, cultural e artística. Encantado com o seu complexo e interessante caracter, aliado a um talento para ajudar e mobilizar pessoas de todas as idades, ainda em vida, o mínimo que podia fazer era partilhar a sua vontade de viver e a sua criação artística. Deu-me a oportunidade de o fazer em vida e após nos deixar ( fisicamente), o mínimo que posso fazer é, através da Casa das Cenas, junto com o apoio de outras parcerias, nomeadamente a edil sintrense, evocar e preservar a sua memória, continuando a divulgar a sua vida e obra artística. Penso que foi uma figura incontornável da cultura em Sintra dos finais do século XX, principio do século XXI. O que Almira e a família Medina deram a Sintra e a muitos sintrenses…talvez não seja possível quantificar… mas o que tenho visto á medida que a vou apresentando como professora, poeta, contista, como pedagoga, caricaturista, ceramista, jornalista, artista plástica, ou até como Madrinha da Casa das Cenas, é um carinho enorme. Tanto que, pelas comemorações do 100º aniversário do seu nascimento, constatei esse facto; foram muitas manifestações de admiração e carinho por ela, pelo pai, pelo filho, pela sua obra, tanto por pessoas que privaram com ela, bem como, que ouviram falar dela e da sua obra. Particularmente, sinto-me grato, muito grato pela sua amizade, apoio e generosidade Cultural. Digo isto, com felicidade e entusiasmo, mas gostava de estar mais leve para continuar a partilhar, manter e dignificar o seu legado e ao mesmo tempo, poder viver e usufruir de um direito, Artigo XXVII, consagrado na Carta dos Direitos Humanos. Estou cansado deste socorro cultural.
“Em Sintra, o futuro é continuar a trilhar o caminho junto de pessoas e das comunidades”
Quais são os vossos projetos para o futuro?
O Futuro é hoje e hoje há que continuar a dignificar o pensamento critico, a criação e a liberdade de expressão das e para as pessoas de Portugal e do Mundo, continuando a criar e fomentar parcerias, com os agentes Sócio-Culturais, das Artes, da Educação, do Património, da Ciência e das Universidades. Em Sintra, o futuro é continuar a trilhar o caminho junto de pessoas e das comunidades para que juntos e com o apoio da CMSintra, a CulturSintra, Freguesias, entre outras parcerias, possamos empreender projetos, a curto, médio e a longo prazo, com a finalidade de formar e valorizar as pessoas que vivem, trabalham ou visitam o Concelho de Sintra. O futuro também passa sempre por agradecer no presente ás muitas ajudas e consideração, principalmente, dos amigos e da familia.
Gratos, e muitas felicidades á Alagamares que ” … como um corvo / que voa descobrindo os brancos ovos ocultos “.
CONTACTOS
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“O essencial na vida não é convencer ninguém, nem talvez isso seja possível; o que é preciso é que sejam nossos amigos; para tal, seremos nós amigos deles; que forças hão-de trabalhar o mundo se pusermos de parte a amizade?” Agostinho da Silva (Fonte – Sete Cartas a um Jovem Filósofo)