Entrevista com o historiador Jorge Martins

Jorge Martins, nasceu em Lisboa (1953), é doutorado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com uma tese sobre os judeus portugueses (2006). Autor de manuais escolares, obras de ficção e ensaio, designadamente estudos judaicos e inquisitoriais, temática a que se tem dedicado nos últimos anos, sobre a qual publicou os seguintes livros: O Senhor Roubado, a Inquisição e a Questão Judaica, (2002); O Sacrilégio de Odivelas (teatro), (2003); Portugal e os Judeus, 3 vols., (2006); Breve História dos Judeus em Portugal, (2009); A República e os Judeus, (2010); Maria Gomes, Cristã-nova, 117 anos: a mais idosa vítima da Inquisição, (2012); Manteigas, Minha Pátria: os cristãos-novos de Manteigas, vol. II, (2015); A Inquisição em Ourém,(2016); O Judaísmo em Belmonte no Tempo da Inquisição, (2016); A Confitente (ficção histórica), (2019); Portugal e os Judeus, nova edição, (2021); Os Pessoa na Inquisição. As origens judaica e fidalga de Fernando Pessoa, (2022); A Comunidade Criptojudaica de Monsanto,(2022).  

Já por diversas vezes participou nos Encontros de História de Sintra organizados pela Alagamares (em baixo, no VI Encontro, em 2021), e falou agora para o nosso site sobre essa matéria.

Quando e em que zonas do país se começou a verificar a difusão da cultura judaica, e qual a sua integração na comunidade?

Houve vários momentos em que isso aconteceu no período contemporâneo. Durante o Liberalismo, extinguiu-se a Inquisição (1821) e, consequentemente, tomou-se a consciência de que as suas grandes vítimas tinham sido os judeus. E, em meados do século, surgiram obras de referência, como a “História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal”, de Alexandre Herculano, que suscitou grande interesse na época. A 1ª República autorizou constitucionalmente a existência legal do judaísmo e legalizou as duas primeiras comunidades judaicas pós-expulsão manuelina de 1496: a Comunidade Israelita de Lisboa (1912) e a Comunidade Israelita do Porto (1923).  A “Obra do Resgate” do judaísmo subliminar existente em grande parte a norte do Tejo, protagonizada pelo capitão Barros Basto a partir de 1926, veio agitar as consciências sobre essa existência. Mas talvez se deva destacar a sobrevivência da única comunidade judaica resultante desse resgate, particularmente promovido por Samuel Schwarz, um judeu polaco engenheiro de minas, que se instalou em Belmonte e que estabeleceu contactos próximos com os judeus locais em 1917, de que resultaria posteriormente a criação da comunidade judaica, mundialmente conhecida entre os judeus.

Que traços distintivos tiveram os judeus portugueses face a outras comunidades peninsulares?

Como se sabe, os judeus da Península Ibérica são sefarditas (Sefarad em hebraico refere-se à Ibéria), enquanto os do Leste e Centro da Europa são asquenazitas (asquenaze em hebraico refere-se à Alemanha). Portanto, são mais as semelhanças do que as diferenças entre os judeus peninsulares. Contudo, a história dos judeus portugueses teve algumas diferenças importantes da dos judeus espanhóis, decorrentes do facto de a Inquisição ter surgido em Espanha (1478) antes da expulsão dos judeus (1492), enquanto em Portugal, primeiro foi a expulsão (1496) e depois a Inquisição (1536). Isso refletiu-se no comportamento dos agora chamados cristãos-novos dos dois lados da fronteira. Os espanhóis puderam abandonar as suas terras na sequência da expulsão e os portugueses foram batizados à força (1497) e dificultada a sua saída. Essas diferenças tiveram impacto na mentalidade mais afirmativa dos espanhóis hoje em dia e numa reconhecida bipolaridade portuguesa, que ora exulta de confiança, ora se refugia num complexo de inferioridade. Uma nota curiosa de quem reparou nessa característica. O romancista nova-iorquino Richard Zimler, a viver há décadas em Portugal, assumindo legitimamente a sua (também) identidade portuguesa, proferiu as seguintes palavras num colóquio: “O nosso complexo de identidade…”.

É verdade, como se por vezes propala, que muitos apelidos referentes a árvores de fruto vincam uma pertença ou descendência judaica?

Não, não é verdade. Todos os meus estudos sobre os apelidos dos criptojudeus vítimas da Inquisição (e seus parentes) demonstraram que os apelidos com nomes de árvores e de animais são residuais entre os cristãos-novos. Apesar de terem alguma variação geográfica, entre os que mais frequentes estão os Henriques e os Nunes, por exemplo. Apelidos obviamente cristãos, porque os cristãos-novos, descendentes dos judeus batizados à força, que passaram a ter de se batizar, casar pela igreja e ir à missa, também tiveram de adotar apelidos cristãos. Em suma, o apelido, só por si, não garante ascendência judaica, embora me perguntem frequentemente se os seus apelidos indiciam essa ascendência.

Quer referir alguma personalidade judaica com forte ligação a Sintra? Ou algum caso de perseguição que recaísse em famílias ou personalidades de Sintra

Assim de repente não me lembro do nome de nenhuma personalidade judaica com ligação a Sintra. Quanto a famílias, eu destacaria a família Mesas de Lemos, que veio de Estremoz e se instalou em Sintra no século XVII. Pelo menos cinco membros desta família foram presos pela Inquisição, tendo dois deles sido queimados nas fogueiras: Manuel de Mesas, no auto-de-fé de 11 de outubro de 1654, e seu filho homónimo, no auto-de-fé de 15 de dezembro de 1658. Também tiveram o mesmo dramático fim a irmã do primeiro, Beatriz de Lemos (no mesmo auto-de-fé), e seu marido Garcia Henriques. Sebastião Lourenço, formado em Latim e Artes em Lisboa, um dos seis filhos do casal Manuel de Mesas de Lemos e Joana de Mesas (também presa), foi viver para Roma. Quiçá tenha tido um percurso notável na diáspora, como muitos dos judeus seus contemporâneos.

Como vão os estudos portugueses na temática do judaísmo e do criptojudaísmo? Quer sugerir algumas obras ou autores?

Felizmente, têm surgido muitos estudos, congressos e centros de interpretação ou museus judaicos de norte a sul do país. Hoje conhece-se melhor a história dos judeus, que são uma parte da História de Portugal e as comunidades desses locais começam a ter consciência de que essa história também é a deles e, em muitos casos, de seus antepassados diretos, ou seja, têm ascendência judaica. Isso deve-se justamente à emergência de uma historiografia consistente, não só geral, como local. Para não ser injusto para nenhum dos novos investigadores (historiadores, antropólogos, arqueólogos, sociólogos, filósofos), entre os vivos cito apenas dois historiadores: Maria José Ferro Tavares e António Borges Coelho.

Fala-se hoje muito em evidência à ação do Estado de Israel em Gaza em antissemitismo. Quais são as características essenciais do comportamento anti semita, e por que razão tal sentimento tem durado ao longo dos séculos

O antissemitismo fez caminho sobretudo graças à intolerância e à perseguição católicas, que culminou com a introdução da Inquisição, que se propôs extinguir o judaísmo, o que não conseguiu, pois acabaria por ressurgir, quer pela resiliência dos criptojudeus, quer pela entrada de judeus sefarditas provenientes de Marrocos e de Gibraltar no século XIX, quer ainda pela vinda de judeus asquenazitas da Europa de Leste e Central desde as primeiras décadas do século XX, com destaque para os fugidos da besta nazi, que o cônsul Aristides de Sousa Mendes salvou em 1940. O atual estado de guerra no Médio Oriente veio contribuir para a emergência do antissemitismo latente. Uma coisa é condenar a forma como Israel tem agido em resposta ao crime hediondo do Hamas, que desencadeou esta guerra. Outra, é confundir sionismo (absolutamente legítimo) com antissemitismo. Há judeus que são contra a existência do Estado de Israel, mas não são contra a sua própria existência. O sionismo é tão-só o direito à existência do Estado de Israel. Curiosamente, quem é contra a existência do Estado de Israel, não é contra a existência de estados islâmicos ou de outra qualquer religião. O Estado do Vaticano é legítimo? Os antissemitas aproveitam todas as oportunidades para virem à tona invetivar os judeus. O padre António Vieira, dizia de forma assisada no século XVII, a propósito do roubo de hóstias da Igreja Matriz de Odivelas, que, se um judeu tivesse sido o ladrão (e não se provou que fosse), isso não poderia servir para condenar os restantes, designadamente aqueles que viviam no Império, que não o poderiam ter feito. Isto é uma forma inteligente de condenar o antissemitismo. Independentemente das suas opiniões sobre a atual guerra, que culpa têm os judeus portugueses da ação de Israel nesta guerra? Ser antissemita é ser contra a existência de judeus e da religião judaica. E isso não é aceitável, tal como não é ser-se contra o islamismo e os muçulmanos que não participaram no massacre de 7 de outubro de 2023 e que até o condenaram.

A legislação portuguesa admite desde há alguns anos o reconhecimento da pertença a famílias sefarditas perseguidas durante o século XV e XVI como via para aquisição de nacionalidade portuguesa. Qual é ou pode ser o padrão preponderante para certificar tal ligação em termos de fiabilidade?

A questão da fiabilidade só se resolveria se o Estado Português tivesse acautelado a verificação da documentação exibida para justificar o direito dos candidatos. Não se trata de desconfiança em relação à seriedade das comunidades judaicas, é uma questão de equidade. Assim como não basta, por exemplo, o sindicato dos professores garantir que um candidato a professor tem as habilitações necessárias, sendo indispensável confirmá-lo através da entidade estatal competente. Mas, contratar profissionais habilitados para avaliar as candidaturas à nacionalidade portuguesa, teria custos e o facilitismo é a norma para quem não quer fazer as coisas com rigor. Nem que esses custos fossem imputados aos candidatos. A primeira versão da lei submetia ao critério das comunidades judaicas a fiabilidade das candidaturas, o que não era aceitável, pois nenhum cidadão pode justificar direitos através das declarações das suas comunidades, sem prova atestada pelo Estado. A segunda versão exige três anos de permanência em Portugal. Como é que os muitos milhares de descendentes dos sefarditas, por exemplo, na América Latina, e em particular no Brasil, podem vir para Portugal viver durante três anos para ter esse direito? Se a lei surgiu para reparar a injustiça da expulsão manuelina e da perseguição inquisitorial, então, deve tratar este caso de forma específica e não pôr entraves que a tornam impossível para muitos milhares que não têm condições para cumprir a exigida residência em Portugal.

Entrevista de Fernando Morais Gomes

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