Entrevista com Pedro Neto, Diretor Executivo da Amnistia Internacional

Pedro Neto é Diretor Executivo da Amnistia Internacional Portugal (AI), desde maio 2016. Antes de assumir funções na AI, foi um dos fundadores e o presidente da ONGD ORBIS – Cooperação e Desenvolvimento, onde coordenou projetos de desenvolvimento nos PALOP e Brasil.

Licenciado em História, na variante de Arqueologia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Pedro Neto é pós-graduado em Ciências da Educação, Ciências Religiosas e Direitos Humanos, pela Universidade Católica, pelo Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro e pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, respetivamente. Para além disso, é mestre em Gestão e Administração Pública, pela Universidade de Aveiro, e doutorando em Políticas Públicas, na mesma universidade, investigando na área da liderança comunitária e direitos humanos.

Pedro Neto foi também diretor-adjunto do CUFC – Centro Universitário Fé e Cultura, na Diocese de Aveiro, docente no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro e docente do ensino secundário público. Desde 2004 que desenvolve várias missões de voluntariado, entre as quais ao interior de Angola, onde trabalhou num campo de refugiados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, e em Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Amazónia e Marrocos, em projetos de capacitação e desenvolvimento comunitário.

Aqui publicamos a entrevista que concedeu ao site da Alagamares

Neste início de 2020 como caracterizaria o estado dos Direitos Humanos no mundo? O balanço é mais de preocupação ou de consolidação de avanços?

O balanço aponta para ambos. De facto, os direitos humanos são muito transversais à nossa vida e, nessa transversalidade, há muitas realidades díspares no que à geografia diz respeito. Alguns países melhoraram muito em alguns direitos, outros noutros. A realidade é dinâmica.

Se olharmos para a História, percebemos que, ao longo dos últimos 71 anos, houve muitos avanços. A fome e a pobreza extrema diminuíram drasticamente, já o acesso à educação e à saúde aumentaram significativamente. A taxa de mortalidade infantil baixou muito. O desenvolvimento económico e tecnológico trouxeram a garantia de usufruto de muitos direitos humanos no mundo, no entanto, a forma como algum desenvolvimento aconteceu não foi sustentável e, hoje, estamos a pagar o preço disso.

A instabilidade climática traz desafios importantes, assim como a sustentabilidade dos recursos naturais, a poluição, as ameaças à democracia, o ruído e os jogos de manipulação e poder que usam todas as mentiras para alcançar mais poder. Tudo isto causa preocupação e alerta que todos devemos ter.

 

Como encara a AI a questão de novos direitos como os relacionados com a cibersegurança, a igualdade de género ou os crimes ambientais?

A cibersegurança vem com o desenvolvimento da tecnologia, que nos trouxe conforto e comodidades.  Sendo a tecnologia uma ferramenta neutra, o bem e o mal está no uso que lhe damos e com as coisas boas, vieram também os perigos.. No entanto, na aproximação de todo o mundo vieram também desafios à privacidade, ao controlo, à segurança e ao bem-estar das pessoas. Hoje, o mundo gira muito em torno disso. Algumas das empresas que mais crescem no mundo não são as que produzem, mas as que intermedeiam os produtos através de tecnologias.

A igualdade de género é para nós isso mesmo: todas as pessoas são iguais, independentemente do género, da origem étnica, do país onde nasceram ou da riqueza com que nasceram. Todos somos iguais na nossa dignidade e o mundo tem de ser justo no ponto de partida de todas as pessoas, sem as classificar. Somos todos seres humanos. É isso que nos une. Bem sabemos que o mundo está longe de perceber e integrar isto mesmo. A busca pelo bem e pela justiça tem de ser constante, começa na educação e percorre todas as outras frentes da sociedade até esta perceber e viver em pleno a igualdade na dignidade.

O ambiente é de onde vem tudo aquilo de que necessitamos para viver. Todos os nossos recursos, toda a nossa alimentação, água, roupa, todos os materiais usados para construir os objetos que usamos diariamente vêm de materiais da natureza. Atentar contra ela é atentar contra nós, contra a humanidade. Se a ganância atropelar o ambiente e a natureza, nada restará à humanidade daqui a alguns anos.

Que casos de maior relevo podem ser apontados como negativos para o nosso país?

No nosso país, persistem as desigualdades. O acesso à saúde, o acesso justo à habitação, das classes mais pobres e da classe média, principalmente nos centros urbanos de Lisboa e Porto, muito afetados pela especulação imobiliária, pela pressão do turismo – apesar das coisas boas que ele trouxe – e dos vistos gold utilizados não para investimento, mas para comprar residências permanentes através da compra de casas.

Portugal tem ainda desafios importantes no que diz respeito à discriminação. A discriminação a pessoas com necessidades especiais ou portadoras de deficiência, sendo que o primeiro termo – necessidades especiais – é o mais correto e real. As medidas políticas que apenas são paliativos para slogans de “vida independente”, uma vez que todos somos dependentes e a vida dependente na interpretação da lei tem que ver com a vida em casa e não a vida social, no exterior, e desde logo referindo a falta de equipamentos públicos para pessoas com mobilidade reduzida.

Há ainda a referir uma discriminação invisível que é a pobreza no nosso país, discriminação essa que se alavanca na sua gravidade. Isto se à pobreza juntarmos outros aspetos como a origem étnica e o género, por exemplo. Ainda na discriminação, a nenhuma atenção que damos aos nossos reclusos e aos problemas nas prisões.

Outro perigo que espreita é o discurso de ódio, a banalização do dizer-se mal e destruir os outros. Há uma certa forma de ser e estar na política que se alimenta e cresce a partir da discórdia, que quer destruir, ao invés de construir comunidade. Refiro-me aos partidos de extrema, tanto à direita como à esquerda.

“Os direitos humano estão em risco”

No que refere a Direitos Humanos, há evolução positiva da situação em Portugal? Como se pode qualificar a situação ao nível do sistema prisional e da violência nas esquadras, por exemplo?

Não é possível, com honestidade, falar-se de evolução ou melhoria sem definirmos o tempo de comparação. A liberdade de expressão evoluiu e melhorou muito desde 1974. Se falarmos de acesso à educação, à saúde e aos restantes direitos económicos, a situação melhorou muito.

No entanto, há ainda problemas no nosso país, alguns que se agravaram. Este é um tempo de tensão, de polarização, de instrumentalização de muitas coisas por partidos políticos e grupos obscuros que se disfarçam de movimentos e supostos sindicatos.

Também no ambiente, em Portugal como no mundo, há problemas significativos que temos de endereçar com soluções já no presente, sob pena de hipotecarmos não só o futuro, como também o presente. As alterações climáticas, a poluição e o consumo desenfreado de recursos naturais do planeta estão a colocar a humanidade em cheque e, por conseguinte, os direitos humano estão em risco, com destaque para os económicos, pois é da Terra que tiramos tudo o que necessitamos.

Qual a posição e o trabalho da Amnistia Internacional no que concerne ao direito a emigrar, direito de asilo e crise migratória sobretudo na bacia do Mediterrâneo?

Ao longo dos últimos anos, temos trabalhado com afinco para que os refugiados, em qualquer parte do mundo, sejam acolhidos. Temos feito esse trabalho através de campanhas públicas e advocacia política junto dos governos.

A crise de refugiados que chegou às portas da Europa e que culmina em tragédias tão graves no Mediterrâneo podia e pode ser evitada se os governos europeus partilharem esforços no acolhimento a quem foge de guerras e da miséria. Se houver rotas legais e seguras, não haverão mortes no mar; se os governos partilharem a responsabilidade do acolhimento, não sobrecarregaremos a Grécia, a Itália, a Alemanha ou a França. Se a integração for célere e rápida, estas pessoas que fogem de traumas profundos com as suas famílias depressa estarão a contribuir para enriquecer a nossa sociedade com toda a diversidade que nos trazem, com a sua força de trabalho, com a sua cultura, gastronomia, amizade. Farão aquilo que nós portugueses fazemos quando emigramos. E somos tantos com esse saber e filhos desse esforço.

Quais são os países mais problemáticos no que refere a Direitos Humanos? Está Portugal num quadro satisfatório?

Não consigo elencar um ranking, pois os direitos humanos são diversos e cada país tem desafios próprios para vencer. Destacaria pela negativa a China, com problemas de direitos humanos muito graves e em todas as suas frentes.

Os Estados Unidos, com uma administração muito pouco interessada no bem comum, quer no seu trabalho de governação interna, quer na construção da paz internacional, quer no combate às alterações climáticas.

A Venezuela, as Filipinas, a Turquia e a Rússia são países com muitos e conhecidos problemas de direitos humanos.

Portugal pode ser melhor exemplo de liderança, quer na Europa, quer com os países com quem temos relações especiais. Temos feito muito pouco a um nível internacional. No campo nacional, já disse bastante acima.

“A segurança tem lugar, o acolhimento também. Não se podem sobrepor”

Qual deve ser, segundo a AI, o conceito que melhor defina terrorismo em termos jurídicos, sem descambar em normativos securitários?

O nosso trabalho centra-se nos direitos humanos. Não nos compete definir um conceito de terrorismo, mas importa-nos que ele e a segurança não sejam argumento para justificar formas de discriminação. A segurança tem lugar, o acolhimento também. Não se podem sobrepor.

Qual é a posição da AI no que refere ao Tribunal Penal Internacional e à existência de presos sem direito a julgamento, como sucede ainda no que refere a Guantanamo?

A Organização das Nações Unidas e todas as suas agências e instrumentos de ação têm bastantes limitações porque se mexem numa organização diversa, múltipla, com vários mecanismos que causam demoras e entropias. É uma organização importantíssima, mas com mecanismos democráticos que escutam todos os Estados-parte e onde em alguns organismos há até poder de veto, como é exemplo o Conselho de Segurança.

Existirem no mundo, seja em que parte for, prisioneiros sem acesso devido à justiça ou com julgamentos sumários, injustos, sem as condições que o Direito Internacional exige é um abuso de direitos humanos.

Quais vão ser as principais iniciativas da Amnistia Internacional Portugal em 2020?

Em 2020, vamos estar focados em duas áreas de trabalho essenciais que é a repressão da sociedade civil e as consequências em matéria de direitos humanos causadas pelas alterações climáticas. Vamos trabalhar para que nestas duas áreas tão significativas o mundo, no final do ano, seja mais justo e mais igual graças à nossa ação e ao nosso crescimento: quanto mais pessoas forem ativistas pela Amnistia Internacional, maior capacidade teremos para fazer a diferença e salvar vidas.

Entrevista de Fernando Morais Gomes

 

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