Entrevista: Luís Corredoura, um desenhador das letras

 

Luís Corredoura nasceu em 1975, na vila de Pêro Pinheiro, concelho de Sintra, filho de uma família com fortes ligações ao maior núcleo de transformação de rochas ornamentais do país.

É Arquitecto e Mestre em Recuperação de Património. Além dos projetos de Arquitectura, desenvolve, desde muito novo, projetos literários, “manuscritos” que vai guardando na penumbra da gaveta e no íntimo dos seus pensamentos.

“Nome de Código Portograal”, editado em Maio de 2013 pela Marcador, foi o seu primeiro romance a ver a luz do dia. Recentemente, veio a público uma segunda obra, “Lusitano Fado”, um romance também editado pela Marcador e com a chancela da RTP, e a Alagamares foi ouvir este escritor sintrense

ALAGAMARES- Quando é que o Luís Corredoura começou a escrever e o que o motivou para tal?

A escrita tem estado presente na minha vida desde o momento em que comecei a desenhar as primeiras letras. Entre rabiscos de alguém que almejava desde muito novo em ser arquitecto – isto depois de passar a fase em quis seguir o ofício de pedreiro ou carpinteiro… – e pensamentos que amiúde registava em folhas avulsas, paulatinamente comecei a organizar os meus escritos em composições mais complexas até que as mesmas se consubstanciaram em manuscritos cujos exemplares que sobreviveram à incúria dos tempos ainda hoje se encontram no recato do fundo de uma gaveta.

Quanto aos motivos… Bom, creio que tudo se resume a uma necessidade tão primária, instintiva e natural como respirar. E tal como este simples gesto que inconscientemente repetimos milhares de vezes diariamente, assim também sucede com a escrita, ou seja, a mesma é por vezes mais profunda, mais acelerada, demorada ou até contida – pouco contida pois se se prolonga a contenção corre-se o risco de sufocar.

 

ALAGAMARES- Quer falar-nos um pouco das suas obras publicadas até ao momento?

Presentemente, dentro do meu universo de “manufacturas literárias”, tenho duas obras publicadas, “Nome de Código Portograal” e “Lusitano Fado”. A primeira nasce de um projecto ambicioso, representando a parte editada metade do original, concretamente aquilo que não aconteceu na realidade mas que podia muito bem ter sucedido. Muito resumidamente, as páginas publicadas contém uma eventual participação de Portugal na II Guerra Mundial, tendo por base a Directiva nº18 emanada pelo Quartel-General de Hitler, assim como a operação “Félix”, o plano engendrado pelos militares nazis para invadir Gibraltar e Portugal. Para além destes facto históricos, misturei no enredo a fixação que determinadas e eminentes figuras do tenebroso aparelho nacional-socialista tinham por relíquias de índole cristã e/ou relacionadas com os Cavaleiros Templários. Pelo meio, há a luta dos resistentes à ocupação nazi e dos seus aliados franquistas – a invasão de Portugal sucede graças à conivência e interesses de Francisco Franco, o líder espanhol, em anexar o nosso país e em ficar com algumas das nossas colónias de então -, a defesa dos supostos tesouros escondidos em tempos pelos Templários em território português e, finalmente, a libertação da tirania e o que sucedeu depois disso. Posso adiantar que vários lugares tidos como “sagrados” e “místicos” do território português são cenários da acção, como acontece com Tomar e Sintra.

O segundo livro editado é mais “leve” e contemporâneo. Não há batalhas, nem atrocidades envolvendo campos de concentração, nem há sangue a escorrer tétrica e abundantemente!… Tem como personagem principal um professor do ensino secundário que, perseguido na sua própria escola devido a uma falsa acusação, acaba por se ver envolvido numa trama quando, afogando as mágoas numa taberna pouco recomendável, conhece um velho homem misterioso que lhe revela alguns dos principais segredos políticos de Portugal. Depois de ganhar a confiança desse desconhecido, o professor fica a par de vários assuntos sigilosos da História recente, concretamente factos que reportam ao 25 de Abril de 1974, passando pela descolonização, pelo “acidente” de Camarate e por outras situações mais comtemporâneas.

Ajudado por uma amiga – alguém que nutre pelo professor uma paixão secreta e que, “curiosamente”, é neta de uma das principais personagens do “Nome de Código Portograal”, um nazi arrependido que conseguiu fugir para o Brasil no final do segundo conflito mundial -,Alberto Montez vai ter que lutar pela sua vida, pela da sua filha e pela da sua companheira quando os poderes ocultos que comandam a vida do país descobrem que o sigilo está prestes a ser quebrado e revelado ao mundo.

 

ALAGAMARES-Há um sentido trágico em Sintra ou tudo não passam de exacerbações românticas derivadas dos mitos que a ela se associam, hoje em retorno acentuado?

Não sei se há esse sentido trágico, não obstante toda a envolvente ser ideal para grandes histórias e tragédias, quiçá perfeita para encenações da tetralogia wagneriana “O Anel do Nibelungo” ou para algumas das mais dramáticas peças shakespearianas. Para mim, há, sim, um sentido mágico, místico, mítico, de encantamento, enfim, do que lhe queiram chamar.

A minha experiência diz-me que não é por mero acaso que todas as pessoas que visitam a região ficam maravilhadas com a vila, com a serra, com o que se avista do alto do castelo, da Peninha, da Roca.

Agora, apelará o lugar a um sentido trágico? Em termos literários, creio que sim. Basta ter em conta as palavras de Lord Byron em relação ao local. Quando um dos expoentes máximos do romantismo afirma que “a vila de Cintra na Estremadura é, talvez, a mais bela do mundo inteiro”, isso, dentro do espírito da época, pode dar azo a muitas interpretações. Belo no sentido literal ou belo no sentido romântico, quase trágico, ideal para consumar um premeditado fim de vida depois de se ler “A paixão do jovem Werther”, de Goethe, obra que conduziu a tantos suicídios por essa Europa fora de leitores que se identificaram com a figura retratada?

No fundo, Sintra será sempre intrinsecamente romântica, até mesmo quando toda essa tendência estiver impregnada de um certo sentimento trágico.

 

ALAGAMARES-Quais são os seus autores de referência?

Inevitavelmente, Eça de Queiroz, Antero de Quental e Fernando Pessoa. Quando era mais novo, li praticamente todos os romances do Eça de um modo quase compulsivo. Quanto aos outros dois, amiúde busco surpresa e uma luz nos seus escritos. Para além destas figuras supremas do panorama literário nacional, refiro, entre outros, Fernando Campos. Algumas das suas obras merecem figurar na composição de qualquer biblioteca. Em termos internacionais, Leon Uris é o meu farol, assim como Amin Maalouf, Gabriel Garcia Marquez, Umberto Eco, Sven Hassel, entre vários. Mas isto são só alguns exemplos dentro de um universo que engloba dezenas – ou até mesmo centenas – de referências.

 “Nos tempos que correm, os intelectuais não gostam de ser “escribas obscuros”, nem tão pouco “funcionários”

ALAGAMARES- O que é ser intelectual hoje? Se o intelectual nasceu com a Cidade, hoje, com a globalização terá virado funcionário? O intelectual é um “escriba obscuro” como escreveu Foucault?

Sinceramente, julgo que um intelectual é alguém que faz – e que sabe fazer constantemente e com consciência – bom uso da sua capacidade de raciocínio em prol da comunidade onde se insere.

Comummente, associam-se essas pessoas àquelas que escrevem longas e profundas reflexões que, posteriormente, muito poucos estão habilitados a ler e/ou compreender. Daí que a intelectualidade continue a ser vista em Portugal como algo de cariz metafísico, ao alcance de uma elite que não sabe – ou não quer – descer ao nível dos comuns mortais, como se temesse profanar o alegado saber que conhece ou possui.

Nos tempos que correm, os intelectuais não gostam de ser “escribas obscuros”, nem tão pouco “funcionários”, visto isso soar a algo excessivamente humilde. Hoje, um intelectual, para ser tido como tal, tem que ter uma presença constante nos meios de comunicação social, ser notícia ou fazer notícia. Perante isto, noto que existem muito poucos exemplares dignos da verdadeira acepção do termo no panorama português. No entanto, reconheço que os poucos e genuínos que temos são muito bons, senão mesmo os melhores nas suas diferentes especialidades. Adianto como exemplos, a talhe de foice, Eduardo Lourenço ou António Damásio.

 

ALAGAMARES- A sua escrita é classificável, ou classificar é limitar? Qual a sua obra mais conseguida? Já se zangou por ter escrito alguma delas, ou ter desejado alterar-lhes o rumo?

Tecnicamente, não sei como classificar a minha escrita, visto isso acabar por ser uma limitação, uma balizagem excessiva, quase castradora. Escrevo, ponto. Os entendidos que a classifiquem ou que a encaixem nos diferentes nichos existentes.

Em termos de obra mais conseguida… Até ao momento, julgo que será todo o volume de onde foi retirada a parte que se consubstanciou no “Nome de Código Portograal”. Reconheço nesse “manuscrito” o meu “Guerra e Paz”, como brejeiramente o apelido, não querendo com isso comparar-me a Tolstoi. Essa empresa foi, quiçá, a minha obra mais intensa, a que me obrigou a uma maior dedicação e a que mais me envolveu. A sua feitura foi um verdadeiro sacerdócio. Talvez um dia se publique na íntegra… Veremos o que o futuro nos reserva.

Quanto a zangas e fúrias… Nunca me zanguei com os meus escritos. Quanto muito, exalto-me comigo por não ter sabido escrever melhor, com maior intensidade, por não ter conseguido expressar com clareza uma ideia, um sentimento. Hoje, quase tudo quanto escrevo nasce através de um teclado. No entanto, poucas coisas me deram – ou dão – tanto gozo como escrever manuscritamente aqueles que considero como sendo até ao momento os meus “opus magnum”. E porquê? Porque há uma mais profunda e íntima envolvência quando se redige algo através de uma caneta, de um aparo. Primeiro, a concentração tende a ser maior e, depois, há uma quase abstracção do mundo – coisa difícil de ocorrer quando se tem um computador diante dos olhos, principalmente quando o mesmo está conectado à internet… – para que os pensamentos possam fluir sem entraves desde a cabeça, através do braço, da mão, até à ponta do aparo. Nessas ocasiões, zangava-me – e zango-me quando insisto em regressar a essa técnica do passado – quando era abruptamente interrompido e impossibilitado de fazer correr a torrente de ideias. No fundo, sentia-me como se ficasse a afogar-me num lago por terem fechado as comportas da barragem, elevando assim o nível das águas…

 

ALAGAMARES-Pode dizer-se que o escritor escreve sempre o mesmo livro e toda a obra é autobiográfica, como sugerem alguns autores?

Não subscrevo isso. Claro que há muitos casos assim. Veja-se o que se escreveu sobre o autor recentemente galardoado com o Nobel da Literatura, o francês Patrick Modiano. Reconheço que há coisas que escrevo que, de algum modo, estão associadas a situações que passei. No entanto, tento dar mais uso à imaginação que às memórias que guardo dos factos que vivi. “Nome de Código Portograal” é disso um exemplo. Tudo aquilo é o que não sucedeu, o género “what if”, como “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick, ou “Fatherland”, de Robert Harris.

Reconheço, no entanto, que “Lusitano Fado” tem alguns subtis apontamentos autobiográficos, fruto da experiência de vida que tive em Lisboa nos meus tempos de estudante académico.

 

ALAGAMARES-O que anda a fazer e que projectos tem para o futuro imediato?.

Bom, se a questão estiver relacionada com arquitectura, digo aquilo que a esmagadora maioria dos meus colegas responde: isto está muito mal! Se formos para o campo da literatura, o panorama pode ser um pouco mais animador. Afinal, não é necessário haver clientes para se poder trabalhar. Convém, sim, que os haja depois de termos o trabalho completo!… Presentemente, tenho alguns projectos na gaveta prontos a editar, nomeadamente um romance baseado em factos históricos ocorridos há algumas décadas, no ocaso da ditadura salazarista, e um outro do género “what if”. Em termos de “manufactura”, estou numa fase de recolha de dados relacionados com, pelo menos, duas situações que estão em fase de arranque. Vamos ver se há impulsão suficiente para entrar em órbitra ou se terão que ficar ainda mais um tempo em terra.

 

ALAGAMARES-Acha que o livro tem futuro, nesta época do on-line?

Por mim, o livro terá sempre futuro. Tenho muitas vezes em mente aquela frase do Jorge Luís Borges, quando este extraordinário escritor disse que imaginava o paraíso como uma espécie de biblioteca. Se o mesmo realmente existir, espero bem que assim seja – não que me veja parado à sua porta, à espera de entrar!… – para bem daqueles que consigam lá chegar.

Se os livros derem realmente lugar aos tablets, pc’s e afins, o elísio vai parecer uma grande loja de material informático, deveras impessoal e muito pouco interessante!…

 “Sintra, por si só, é um genuíno panorama cultural”

ALAGAMARES-Acha que há um panorama cultural sintrense ou há apenas epifenómenos de franja?

Não personalizando ou até mesmo fulanizando a questão, Sintra, por si só, é um genuíno panorama cultural, não necessita de indivíduos singulares para se fazer notar. O contrário é mais certo. Não será por mero acaso que tudo isto está classificado como paisagem cultural pela UNESCO. Quantos criadores, quantos artistas, escritores, poetas, dramaturgos, fotógrafos, etc., não passaram e/ou passam por estas ruelas em busca de inspiração ou inspirando-se tão-só ao passar por essas calçadas, tendo um vislumbre do Paço Real, do mar ao longe, das terras saloias envolventes? Haverá algo tão sublime como um passeio pela Serra de Sintra, pelas veredas misteriosas que a atravessam? Poderá alguém ficar indiferente à Quinta da Regaleira, a Seteais, ao Palácio da Pena?

Em suma, os alegados epifenómenos que estão na franja é que anseiam por entrar neste universo único em termos mundiais. Poder ou conseguir associar uma determinada imagem a Sintra é como ficar imortalizado. Camões a ler os “Lusíadas” ao incauto D. Sebastião no Paço Real… Lord Byron a redigir o seu “Childe Harold’s Pilgrimage” sem esquecer de referir este local nos seus versos… Enfim, creio que Sintra e cultura são e serão sempre sinónimos indissociáveis.

 

ALAGAMARES- O Leitor é generoso ou é um ser distante e que tem de ser conquistado?

Não obstante a minha curta experiência no mundo da edição de livros, tenho a noção que o leitor, na generalidade dos casos, vai muitas vezes atrás daquilo que lhe é dito para comprar, independentemente da qualidade do produto que lhe é oferecido.

Para autores ainda relativamente desconhecidos do grande público, como eu, o leitor tem que ser conquistado ou levado a ver que há mais vida para lá do que normalmente reveste os escaparates dos “best-sellers”. É um trabalho muitas vezes de sapa, inglório, principalmente quando vemos pessoas que somente por serem figuras públicas vendem livros que supostamente escreveram como pão acabado de sair do forno.

No meu caso, escrevo porque gosto de escrever, porque este gesto é praticamente instintivo. Não escrevo para agradar alguém em particular – excepto eu, claro! -. Faço-o também por gostar de partilhar o que penso e julgo saber acerca de determinados assuntos ou acontecimentos. Jamais o fiz conforme as “tendências do mercado”. Tenho o meu estilo próprio. Se é bom ou se é mau, cabe aos que me lêem defini-lo. Quanto ao resto, não quero conquistar ou forçar terceiros a olhar para mim, nem tão pouco pretendo “colocar-me em bicos de pés” para me fazer notar. Prefiro que me sigam, que me ouçam ou que me encontrem nos meus escritos.

Para além disso, desejo com o que escrevo e partilho despertar a atenção, a curiosidade, acicatar os ânimos e perturbar os pensamentos. Espero poder continuar a editar pela vida fora “manuscritos” que sejam, no fundo, um reflexo daquilo que sempre tentei e tentarei ser.

Entrevista de Fernando Morais Gomes

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