“Escândalo na Vila” comunicação de Liberto Cruz ao VIII Encontro

Liberto Cruz, conhecido poeta e ensaísta, seria um dos oradores do VIII Encontro de História de Sintra, que teve lugar a 29 e 30 de maio de 2025. Não tendo por motivos de saúde possibilidade de estar presente aqui fica o seu texto, alusivo ao escritor Francisco Costa.

L E M B R A N DO

E  S  C  Â  N  D  Â  N  L  O      N  A      V  I  L  A

Tendo nascido, casado, vivido e trabalhado em Sintra, o poeta, romancista e ensaísta de que hoje vamos abordar o romance Escândalo na Vila (Editora União Gráfica. Lisboa, 1965) é um escritor genuinamente sintrense, conquanto a sua obra não deva nem possa ser considerada como regionalista. Este romance apresenta-se afoitamente com uma dimensão universal dada a estrutura, a percepção das personagens e a trama engenhosa com que, desde o começo do livro, se vai desenrolando com uma hábil e uma arrojada narrativa em que as personagens se envolvem e reflectem abertamente, sem entraves nem receios, numa necessária ânsia de se entenderem e de se justificarem perante as situações em que se vão envolvendo, criando assim um ambiente ora justo e louvável, ora impertinente e por vezes, quase não recomendável. Enfim, uma vida em constante efervescência com os seus revés e as suas benesses, ou em sofisticadas confidências, numa mistura ora pretensiosa ora descabida, protegida com frequência pela solidez financeira em que nasceram e vivem algumas das personagens, que se revezam, por vezes, em desnecessárias lamúrias ou em justificações frequentemente atravessadas por adequadas citações bíblicas que procuram atenuar o seu comportamento através de uma dúbia e por vezes capciosa e elaborada justificação.

 Era ainda muito jovem quando contactei, pela vez primeira, com a obra do escritor nosso conterrâneo Francisco Costa, (1900 – 1988)  através da leitura dos seus dois livros de sonetos : e Verbo Austero. Anos mais tarde li o romance intitulado A Garça e a Serpente, que tinha sido galardoado com o prestigiado Prémio Eça de Queiroz.

Sendo eu também um sintrense, e conhecendo o autor do romance que era o Director da Biblioteca Municipal de Sintra, instalada na Vila no Palácio Valenças, que eu frequentava assiduamente, tudo me levava a tentar descobrir e a maravilhar perante as pessoas e os factos que ele descrevia e punha em movimento e que eu pensava então que deveriam necessariamente pertencer a um ambiente, a um tempo e a um espaço que, embora não fossem nem pudessem ter sido os meus, eu poderia sem dúvida poder imaginar.

Em finais dos anos cinquenta do século passado, juntamente com o poeta Ruy Belo, várias vezes o visitei na sua casa na Estefânia, sendo sempre a  literatura, evidentemente, o motivo forte dos nossos encontros.

Entretanto Francisco Costa acrescentara à pena de romancista a de ensaísta para se ocupar de assuntos vários, dos quais devemos destacar Essência e Existência do Romance, Valor Poético do Romance e Realismo Integral em Romance e ainda um curioso opúsculo, escrito a pedido de uma sua filha, intitulado A Data da Crucificação à Luz do Plenilúnio Pascal.

Mencionado e por vezes rotulado, pela nossa crítica literária da época, de ser um romancista católico, Francisco Costa corrigia com firmeza essa asserção afirmando não ser um romancista católico mas sim um católico romancista. Foi mercê do engenho com que soube conceber as suas personagens e da trama como conseguiu desenvolvê-la e pô-la em movimento, que pouco a pouco Francisco Costa se foi notando e impondo entre os nossos escritores seus contemporâneos.

Escândalo na Vila distingue-se por ser dotado de uma ajustada carpintaria romanesca e de uma hábil gestão. Releve-se ainda o movimento das personagens, a narração dos acontecimentos e o tom necessário e adequado para que se possam envolver tanto pessoas e factos como as ocorrências várias que se vão desenrolando com a perícia e a firmeza de um notável prosador. E creio poder ousar dizer ter sido no seu tempo, além das qualidades já apontadas, um dos poucos católicos romancistas portugueses a conquistar, entre nós, a adesão de um público e a poder sobressair entre os seus pares, desde os começos da sua carreira literária.

 Conquanto me recorde ainda de romances como A Garça e a Serpente, Primavera Cinzenta e Cárcere Invisível (Prémio Ricardo Malheiros) e não me possa esquecer da humanidade, da delicadeza, da crueza e da vida referenciadas na trilogia Em Busca do Amor Perdido, continuo a considerar ser este seu livro Escândalo na Vila uma das melhores obras romanescas de Francisco Costa. Servindo-se de um estilo irónico, subtil e por vezes malicioso, em que há páginas de antologia, as passagens deste romance seguem com uma fidelidade e uma constância, dignas de registo, todas as personagens que delas se servem. E note-se ainda, por ser relevante, o recurso feito pelo autor a línguas estrangeiras, com predominância do idioma francês, dado que uma das personagens do romance tinha feito um doutoramento em Paris, na celebérrima Faculdade da Sorbonne, então considerada a fina flor das Universidades europeias.

 Este hábil recurso de Francisco Costa ajustava-se adequadamente ao romance conquanto o leitor português, desconhecedor desse idioma, pudesse lamentar, com justeza, que em notas de rodapé não tivesse sido feita a respectiva tradução. Talvez o autor e o editor da obra o tivessem feito por snobismo ou então considerassem erradamente que os prováveis leitores deste romance não ignoravam certamente a língua do celebérrimo Voltaire.

 O enredo deste Escândalo na Vila passa-se numa povoação designada Portela, uma localidade desconhecida mas talvez não difícil de conceber e de identificar como sendo verdadeira e certamente nossa conhecida. Não se julgue, contudo, que o seu autor procurava apenas fazer uma crítica severa ou ajustada dessa Vila. O autor do romance pretendia acertadamente voar mais alto, servindo-se desta povoação para ser o local simbólico em que iria pôr em movimento não só acontecimentos comuns de vilas mas ainda de suas personagens e de seus vilões.

Tentando, como os melhores autores, narrar e pôr em jogo, neste seu livro, tanto pessoas como eventos, Francisco Costa conta-nos, neste romance, a história de um fidalgo, D. Renato, para quem a sua vida “depois de viúvo, passou a ser histórica aos olhos da Vila.”

Retendo facilmente a atenção do leitor, é com grande interesse que se acompanha o itinerário do casal D. Renato e Fernanda. Rapidamente nos inteiramos da forma como surgiu o seu amor e da quase tragédia que os vai afastando continuamente, sendo dignas de realce a exposição que é feita da virilidade do marido e da demência da mulher. Esta inolvidável passagem do romance não só é impressionante como torna apreciável um livro como este Escândalo na Vila de Francisco Costa.

O leitor poderá, licitamente, não compartilhar e até rejeitar várias opiniões e atitudes expressas pelo fidalgo Renato quando faz referências à arte sua contemporânea, ou quando procura analisar e explicar o aparecimento, entre nós, do então chamado em França novo – romance.

Poder – se – à, ainda, duvidar do determinismo e da reviravolta espiritual de uma personagem como Olga e pôr de reserva a realidade de algumas personagens do romance. Não devemos todavia ignorar o vigor com que o romancista Francisco Costa procurou e conseguiu não só modelá-las como transmiti-las.

A personagem de D. Renato é uma figura, por vezes dúbia, cheia de um simbolismo que necessita de ser vista para lá do significante, cuja definição não é fácil de encontrar adequadamente. Mas julgo que não devemos nem podemos deixar de destacar o intuito com que o romancista Francisco Costa o procurou e conseguiu transmitir.

 Olhando com frequência as pessoas e as coisas com o olhar de quem se julga ter sangue nobre, embora por vezes tente e mostre um certo desinteresse pelo título de que é portador, D. Renato vai ao ponto de fazer algumas considerações curiosas sobre as honrarias que lhe são atribuídas. Daí que a sua personagem carismática consiga facilmente conquistar a adesão do leitor, conquanto a sua conduta nem sempre se apresente como digna de poder vir a ser imitada.

Um fidalgo abastado que parece trabalhar apenas por desfastio e que quase parece ignorar o valor real do dinheiro e para quem uma viagem a Paris deve ser tão dispendiosa como dar uma volta de automóvel pela Portela, que se interessa por questões de ordem estética e que, por razões de natureza ancestral, parece estar disponível para ajudar os mais desprotegidos e num movimento simultâneo está sempre prestes a dar seguimento aos seus dotes de Dom Juan, desde que uma ocasião se apresente, é uma figura evidentemente não em vias de extinção mas sem dúvida menos assídua nas condições apontadas neste romance de Francisco Costa.

Quanto a mim, D. Renato é uma das personagens mais conseguidas de toda a ficção de Francisco Costa. Como se tivesse sido abandonado à sua sorte, dir-se-ia que ele vai ter de reagir e de actuar com os seus próprios defeitos e as suas próprias qualidades.

Outras figuras há, evidentemente, neste romance que chamam a nossa atenção e merecem que sobre elas nos debrucemos dadas as características com que o romancista Francisco Costa as concebeu. Note-se, aliás, que uma das qualidades deste nosso ficcionista é a de ser capaz de, em breves traços, poder dar a entender ou a sugerir ao eventual leitor virtudes e defeitos das suas personagens.

 Lembremos, por exemplo, essa tão forte e tão eficiente figura de Liberato e a presença estranha de Fernanda, sempre repassada de impressionantes camadas quer de misticismo quer de loucura.

Evoquemos ainda uma personagem singular como Henriques, um irmão de D. Renato, evocado como um ser incompreendido pela própria mãe e cujas preocupações diárias parecem estar bem longe de poderem ser consideradas de natureza terrestre.

Podemos ainda nos deter no porte senhoril e inequívoco de Helena, uma personagem tornada sedutora quer pela sua frieza quer pela distância que sempre manifesta, não esquecendo a desconcertante Olga, nem tão pouco, a irrepreensível Ivone tomada de início como uma presa fácil de manejar. E há ainda a pôr em relevo, e a não esquecer, a doutrina patética do velho Doutor.

Poderíamos assim poder concluir que Francisco Costa soube manejar e transmitir-nos um espaço e um tempo em que nos vemos mais envolvidos, mais comprometidos e mais empenhados do que havíamos pensado ao iniciar a leitura do seu romance Escândalo na Vila.

Esclareça-se que não fica por aqui o painel de retratos que preenche este romance de Francisco Costa. Esta sua Vila, aqui retratada, parece ser fácil afinal de poder ser reconhecida, como já dissemos, tão fértil é quer em pessoas quer em casos susceptíveis de serem relatados e comentados. Assistimos assim a um desfile que vai desde as personagens mais notáveis até à figura de um pobre anormal, passando pelos motoristas de táxis e pelo ridículo jornaleco regional, não esquecendo o velho amigo que se conheceu na escola primária e tornado mais tarde um pobre diabo, nem tão pouco o jovem poeta que inicia sua carreira literária ou o oportunista pouco escrupuloso que pretende e procura subir na vida através de práticas ilícitas.

 Ressalvem-se, ainda, a figura do “filósofo” Monsieur Dupont  e sobretudo da  Madrinha, uma mulher dotada de um encanto e de uma força Íntima susceptíveis de moverem instituições.

 É neste longo manancial, que acabamos de comentar, que se passa e desenvolve o clima de uma Vila chamada simplesmente Portela.

Neste livro de Francisco Costa poder – se- à considerar que existem vários desagrados, como acontece em qualquer romance, susceptíveis de serem apontados, por alguns leitores, em relação à personagem de D. Renato, por ele nem sempre manifestar o esperado bom senso nas suas opiniões políticas ou estéticas. Não esqueçamos todavia que se trata de uma personagem de ficção escrita por Francisco Costa nos anos sessenta do século passado, que constitui um relato atento e digno de ser lido e de ser analisado, dado ter sido feito e publicado numa época em que alguns de nós vivemos e não esquecemos.

                                                                            L   i  b  e  r  t  o     C  r  u  z

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