Jorge Telles de Menezes-Em demanda da eternidade. Um texto de Miguel Real

Não é fácil escrever um livro de poesia composto por elegias. Não é fácil, aliás, escrever poesia nas suas diversificadíssimas formas. A elegia, porém, é das composições poéticas mais difíceis, não pela sua forma (que, ao longo do tempo, abandonou uma formulação fixa), mas devido à intensidade da dor sentida pelo poeta. Por isso, a maioria das elegias têm a ver com a morte, a perda, o luto, a tristeza profunda que morte de alguém gera no poeta, igualmente com o exílio (as elegias de Camões, por exemplo, uma escrita em Goa, outra em Ceuta, outra no desterro de Constança, quando fora forçado a afastar-se da Corte em Lisboa), com a imprevisibilidade da vida (Teixeira de Pascoaes, Elegia da Solidão – 1920 – e Elegia do Amor – 1924 -, mas também Eugénio de Andrade, Elegia com pastores ao fundo – 1992), o mistério da identidade pessoal ao longo do tempo que passa (Alberto Pimenta, Elegia).

A elegia é a expressão poética de uma fortíssima melancolia, da saudade de um bem irremediavelmente perdido, é uma lamentação sobre a situação do mundo, como se algo se tivesse rasgado nos tecidos anímicos do poeta, contra o qual se sente, não passivo, mas impotente, na resposta à qual apenas pode dar o que está em seu poder: a poesia. Por isso, não existe expressão poética mais confissionista do que a elegia, nela o poeta narra publicamente a desgraça de que se sente sofrido, a sua amargura, os labirintos da sua inquietação, o seu desconcerto com o mundo material, o do espaço e/ou o do tempo. Neste sentido, se existe um lamento, existe igualmente uma invocação para a reparação do desarranjo existencial e ontológico de que se sente tomado e porventura vítima. A invocação pode ser dirigida aos homens, aos deuses, à Razão Histórica, a uma justiça cósmica universal, aos anjos ou a um santo em particular.

Em Cintra-Babel, como muito bem viu João Rodil no “Prefácio” à primeira edição de Selenographia in Sintra ((2003), a invocação é a do espírito de Cintra, não de Sintra, nome contemporâneo, mas Cintra, nome eterno da vila. O efeito estético conseguido reside num operador literário que Jorge Telles de Menezes manipula com sabedoria de mestre, transferindo para Cintra um cruzamento de lendas constantes do espírito da “Matéria da Bretanha” do ciclo do Graal. Há assim, em Cintra-Babel uma fusão de tempos históricos, no qual o espírito medieval de encantamento maravilhoso presente em Demanda do Santo Graal, Merlim ou no Livro de José de Arimateia enforma a criação cristã da vila de Cintra como residência oculta ou “coração encoberto da Rainha e sua corte na Estrela da Eterna Iluminação”. Cintra ter-se-ia o velho-novo Graal, salvador da humanidade, “tesouro oculto” do espírito.

Pela diferença de nomeação, o autor estabelece o sentido total do seu poema: o nome Cintra guarda o espírito cavalheiresco, maravilhoso, esplêndido (no sentido simultaneamente solar e lunar) dos arcanos da personalidade e identidade da vila; o nome Sintra espelha a sua babelização, amputada dos seus fundamentos míticos e históricos, transformada num mostruário turístico. “Legiões robóticas” devoradoras assaltam a Serra, conquistando o “o coração exterior de Cintra”. Opõem-se a esta invasão o “Louco” e o “Poeta”, que a tinham prenunciado, mas “as mentes do vazio automatizadas pela informação” tinham sucumbido do interior. A Rainha e a sua corte exilaram-se no “real interior da Floresta Encantada” (a Serra). O Poeta, que não queria escrever uma elegia, uma lamentação do desconcerto do mundo, guarda no poema a “Via que conduzirá ao lago sereno da sua sede absoluto, de azul saciado, de um desejo de reintegração no corpo universal”. Assim, o poema ostenta, na sua denúncia da massificação de Cintra, um roteiro de salvação do Poeta e de todos os cintrenses leitores. O IV momento ou estação da elegia aponta, entre as clareiras da Serra, o mapa ontológico desta salvação – “harmonia do mineral, do orgânico e do anímico na passagem [elevação metafísica] para o cimo da pirâmide”, que se evidencia como o cimo da Serra. Na V estação surge o “Filósofo do Jardim”, o homem vertical, umbilicalmente ligado ao Ser, o homem que cria a harmonia na natureza, a tradição de Cintra pertence a estes homens, que é como quem diz aos Poetas e àqueles que vêm outro mundo no mundo, os Loucos. Por isso, os “Replicantes industrialmente programados”, as “máquinas desejantes de possuir, nunca conseguirão domar ou civilizar Cintra, apenas a sua superfície visível contemporânea, que é Sintra. Por maiores que sejam as suas máquinas informativas, o Jardim (a harmonia ontológica da Serra) permanece “oculto” a seus olhos. Aqui vivem, “em silêncio insondável”, a Rainha e a sua Corte, invisíveis, porque com um outro sentido metafísico e espiritual de vida, são como dois mundos paralelos.

No estação VII, o Poeta, autor e protagonista da elegia, agradece aos “iguais” partilharem com ele o sentido oculto das tradições cintrenses, que lhe permite encetar o caminho da “Demanda do Culto Superior”, isto é, essa “centelha inextinguível a que chamo Princípio da Vida, instante em suspensão na Eternidade, no Vácuo em que re-presentamos nossos passos a dispersão universal desde o Grande Som inaugural”.

Neste sentido, unidos tempos diferentes (os arcanos e a contemporaneidade) num mesmo espaço (a Serra, Cintra; Sintra como Babel), assumidos os estatutos e as atitudes dos protagonistas (a Rainha e a sua Corte; os replicantes invasores), o Poeta, que se identifica com o Louco e o Mestre do Jardim, a “Viagem” é prosseguida na estação IX: os primeiros são os guardiães do “tesouro oculto da Libertação da própria Libertação, na clareira dos Reis Invisíveis” (Matéria da Bretanha, o rei oculto, Artur, D. Sebastião, a ilha de Avalon transfere-se narrativamente para a Serra de Cintra). Prosseguida a Viagem sem câmara de filmar, o Poeta identifica-se com os sinais do jardim criado espiritualmente, são os “Castelos lá em cima erguidos por um Rei que era Artista” (D. Fernando II), o Poeta nada tem, “sou forma, num momento suspenso no vácuo”, “sou o rei trágico fechado num salão do palácio” (D. Afonso VI), que canta “a liberdade cantada que foi, um dia, por Rei Trovador e uma Rainha divinamente unida em corpo e espírito” (D. Dinis e D. Isabel).

A estação XI é, porventura, a mais importante da elegia, opera a síntese do que passou (a História de Cintra) e a fragilidade ontológica de que a vila se sente apossada, reconhecida agora como um símbolo apenas turístico, devorada por ícones comerciais, e aponta o caminho verdadeiro, o que pode salvar Cintra. Em Cintra, tudo é diferente visto pelos olhos do espírito: “Cintra é o Nada a que se ascende pela via do silêncio, dos bosques que falam tão-só do Ser repousado na Natureza, da Clareira em que o homem se diviniza ao matar em si o dragão”, isto é, o mal, a mediocridade, o anonimato da multidão desejante de tudo possuir: “Tu é o Nu [isto é, o que é em si, sem atavios ilusórios], o despojado, por isso a paisagem, os palácios, os jardins, tudo é um momento em ti que já foi, é e será sempre uma forma no Vazio, enquanto nessa nudez te despojaste e nada devieste, és, foste sempre serás unicamente pó de oiro do caminho”.

Na estação XII, evidencia-se ser a História uma ilusão, já que Cintra dos arcanos é acessível apenas  aos “iniciados jardineiros”, o “replicante”, ele próprio, é apenas um “holograma, imagem virtual em movimento num Real Superior que mal suspeitas existir”, a verdadeira História foi tecida de “versos de amor, de Crisfal, de Bernardim”, da “escultural Sigeia”. A estação XIII prossegue a anterior: alheados do sagrado, os “frios escravos das máquinas não têm memória e vivem como se eles próprios fossem uma imagem criada por um deus cinéfilo” (atualização da Alegoria da Caverna platónica).

Os versos da estação XIV manifestam esse perfume do oculto que a Serra exala e ao qual os seus habitantes (os “Gnomos”) não conseguem ser alheios, mas confundem o tesouro espiritual oculto com moedas de ouro, esperando um dia enriquecerem explorando o Replicante, o invasor turístico, que tudo reduz a metal sonante.

Na estação XV, o Poeta cruza os Replicantes com os Gnomos, evidenciando serem todos da mesma massa material. Um “detetive” (aquele que desvenda os mistérios), Lemmy Caution, pretende “neutralizar o portentoso computador [no sentido de grande máquina que move o mundo ilusório da História] que regulava a vida de Replicantes e de Gnomos carnívoros e de libertar a escravizada humanidade de Cintra”. Lemmy “trazia na mala o seu livro favorito Death is a Star, e reunira-se primeiro com a Corte oculta para ouvir os seus relatos puramente espirituais sobre a alarve vida de Gnomos e Replicantes”. Death is a Star é, justamente, o subtítulo da elegia Cintra-Babel.

Na estação XVI, compõe-se a narrativa de Lemmy Caution, separa Replicantes de Gnomos, daqueles capta por satélite as milhões de imagens produzidas de Sintra contemporânea; destes, constata ser-lhes indiferentes as novíssimas imagens, guardam em casa velhas e nostálgicas gravuras de Cintra.

Na estação XVII, o lamento elegíaco atinge a sua máxima expressão, Cintra fora derrotada pelos Replicantes, que, são agora mostrados na sua verdadeira vida como condenados á suprema ilusão de adoradores de uma falsa Jerusalém e de um deus único: “viviam num vazio sem forma e, apesar da alma pulsar em seus corpos, nenhum deles lograra personalizar-se [atingir a verdadeira personalidade de Homem] neste mundo. Eram a massa inconsciente, anterior à própria Vida em si”. A esperança é malograda, Sintra-Babel vencerá durante longos anos a antiga Cintra, criada como paraíso iluminado do homem. Resta a contemplação das estrelas, “anelando um novo ciclo de vida em si, a um rendez-vous na Estrela da Eterna Iluminação… Where Death is a Star”.

De salientar que a paginação de Marco Félix Gomes interpõe entre as estação poéticas um conjunto de seis vinhetas/gravuras que representam visualmente momentos importantes do poema.

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À semelhança das Elegias de Duíno, de Rainer Marie Rilke, Jorge Telles de Menezes compôs uma espantosa elegia mística, a única que conhecemos no Portugal moderno, continuada, dois anos depois, pelo seu livro Elegias de Cintra, na quase totalidade escritas na sua casa da Praia da Aguda. Para o leitor deste Prefácio, talvez informar que as novas 26 elegias ostentam um léxico mais profano e menos místico, mas tão sagrado quanto uma mente como a do autor vê nos sinais do dia o brilho e os sinais de um outro mundo (metafísico) que cobre a materialidade do dia.

Dos livros que conhecemos do Jorge Telles de Menezes publicados em vida, os dois de poesia elegíaca, o de poesia e prosa, Selenographia in Cintra, escrito a meias com o seu heterónimo George Till, transformado em peça de teatro pela mão amplamente criativa de Rui Mário e dos Tapa-Furos e porventura motor das elegias (já lá , em 2003, parece a temática do Jardim, do Poeta e terminologia do “Replicante”), o de poesia-filosófica ou de filosofia-poética (cruzamento criativo espantoso do autor) e a sua novela Novelos de Sintra, de 2010, o que mais fortemente nos cativou, e de imediato, foi justamente Cintra-Babel, pela profundidade da linguagem (abstrata e erudita), pela intensidade sentimental (para quem conviveu com o autor, mesmo que pouco, como é o nosso caso, constata que em Cintra-Babel se exprime um complexo sentimental e emotivo, raramente conhecido, de uma genuína paixão pela vila), e, finalmente e mais importante, o Jorge Telles de Menezes conseguiu, como poucos, captar e transmitir o verdadeiro espírito do lugar do conjunto cultural constituído pela serra e por Sintra, que é, como temos dito e publicado, uma espírito lírico e poético.

Por todos estes motivos, não nos custa escrever que Jorge Telles de Menezes, infelizmente desaparecido, é (foi) o maior poeta de Sintra do princípio do século XXI. O seu lugar, hoje não físico, começou com a sua morte um sólido caminho em demanda da eternidade literária.

Agradecemos à Maria, companheira do Jorge, a honra que nos deu, mas também a grande responsabilidade, de assinarmos este Prefácio.

Quinta de Santo Expedito,

Colares,

25 de novembro de 2020,

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