Um artigo de Miguel Real
Manhãs de infância
Ter-te nas mãos em concha ó Serra
de Sintra verde pomba mansa de heras
manhãs de infância hibernadas
pitospóro a exalar primaveras
paralelas obsessivas derramadas
no tempo escorregadia voz e violino rosto à janela
manto inconsútil nómada sobre castelo e bosques
morrinha orvalho lágrima chorada
pelo coração do mar.
Maria Almira Medina, Sem moldura, 1996.
Porventura, o mais belo poema dedicado a Sintra na poesia do século XX.
Ao longo da obra de Maria Almira Medina (1920 – 2016), “matriarca” dos escritores sintrenses na segunda metade do século XX, coexistiu uma harmoniosa coerência entre os factos mais marcantes da história de Portugal e o conteúdo semântico da sua poesia. De facto, a poesia desta autora reflectiu, com forte evidência, os bloqueios e as mudanças radicais existentes na sociedade portuguesa.
Percorrendo-se década a década os poemas de Maria Almira Medina, constata-se a existência de um confronto entre os acontecimentos político-sociais de carácter nacional e os seus reflexos nos versos da autora.
A II Guerra Mundial termina em 1945. Em Portugal, por via do Plano Marshall, da reorganização das forças políticas em toda a Europa, da previsível adesão de Portugal à NATO, aguarda-se uma forte abertura do regime político, que, a curto prazo, pudesse fazer renascer a democracia. Assim, se se analisar o poema da autora, “Espera-se a Primavera”, logo se encontra espelhado o reflexo da mentalidade cultural portuguesa do final da década de 1940: todo o Portugal culto encontra-se à espera do futuro, ou, dito ao modo de Maria Almira Medina: “Espera-se a Primavera”, ou seja, espera-se a Liberdade; um seu verso é muito claro: “espera-se o arco-íris”, isto é, espera-se a felicidade social e a justiça do Estado. Em outro verso, “Toda a vida está à espera”, isto é, transmuta-se em todo o Portugal o desejo de uma nova era política e social.
Na década de 1950, falece o desejo de liberdade, de justiça, de democracia – a ansiosamente aguardada abertura salazarista que não se deu. Portugal, um país parado no tempo, à espera de modernização, cristalizou-se e, pela pena de Maria Almira Medina, nascem novos poemas que exprimem este desalento, esta desesperança, esta desilusão social e individual. Assim, os seus novos poemas reflectem um novo cantar: não a esperança presente no lirismo da década anterior, mas a desesperança de quem sente a revolta por Portugal se encontrar socialmente bloqueado. Deste modo, por exemplo, o poema “O menino e a flor”, de 1958, reflecte com justeza o espírito da década de 50 em Portugal: 1ª estrofe, esperança frustrada; 2ª estrofe, sociedade fundada em preconceitos sociais; 3ª estrofe, revolta contra a injustiça social.
Na década de 1960, o facto nacional mais marcante reside na emergência da Guerra Colonial, em 1961. Com esta guerra, o Estado Novo endurece-se e o regime fecha-se como um castelo afortelezado. Correspondentemente, a poesia de Maria Almira Medina torna-se mais acutilante, mais interveniente face à realidade exterior, mais revoltada face ao presente.
É justamente na década de 1960 que os dois vectores fundamentais da sua poesia – a Esperança e a Revolta – reemergem com uma nova força, ganhando consistência conjunta. Estes dois vectores podem ser corroborados no leque semântico que compõem os poemas “Morna da Ilha do Sal”, “Poemas da Guiné” e “Lua 61”. Do mesmo modo, em “Avejão” a revolta individual brota com um brilho faiscante.
Com efeito, o lirismo de Maria Almira Medina possui uma forte componente individual e mesmo em “Metamorfose” (1961), poema de expressão neo-realista, onde os versos, parecendo querer fugir da revolta individual para a revolução colectiva, algo os força, porém, a submeterem-se a um lirismo pessoal. De facto, o lirismo e a revolta conjugam-se tão harmoniosamente que nenhum destes eixos referenciais abafa o outro. No entanto, se, dos dois, quisermos detectar um traço mais duradouro, mais essencial, encontrá-lo-emos, sem dúvida, na vertente lírica da poesia da autora, como o prova o poema “Talvez não seja a apologia do telefone” (1966), no qual explicitamente se refere que nada há no mundo que seja “apoético”.
Nas décadas de 1970 e 80, generaliza-se o espírito democrático após o 25 de Abril de 1974 e o Império termina ao fim de 500 anos de existência. Concomitantemente, os poemas destas décadas de Maria Almira Medina ganham em profundidade lírica o que perdem em revolta individual. “Poema para o Nuno que tem quatro anos e dorme nas ruas de Mem Martins” adverte-nos de que a revolta, a contestação, rebelião, a ânsia de justiça social continuam a brilhar na poesia da autora.
No entanto, como se referiu, procede-se nestas décadas a uma acentuada carga de lirismo, como se pode constatar em “O retrato o livro e o ramo de rosas da Antónia Gadanha” (1981) e “Tempo de Petúnia” (1981), ou a paródia poética, como em “Jogo herói-cómico com o verto Ter” (1979).
Como máxima expressão desse acentuado lirismo, nasce da pena de Maria Almira Medina um dos mais belos poemas alguma vez escritos sobre Sintra: ”Manhãs de infância” (1988), com que introduzimos este texto.
Na década de 1990, o sentimento poética da revolta permanece forte, como o provam os poemas “A Garcia Lorca” (1998) e “Adivinha (do tempo da Outra Senhora)”.
Porém, mais forte bate agora uma envolvência lírica, repleta de expressão intimista, uma suave voz melancólica que, alimentada pelo nevoeiro diáfano da memória, torna lúcida a voz poética da biografia. É um sentimento outonal, lúcido, sereno, que perpassa por um núcleo avultado de poemas que compõem o livro Sem Molduras (2000) e um conjunto de poemas inéditos, como, por exemplo, a série sobre “Os gatos”. O mesmo sentimento que destaca o Outono do tempo da vida na feitura dos três epitáfios que dão conteúdo ao poema “Jogralices”.
Porém, ainda que mais intimista, a poesia da década de 90 de Maria Almira Medina não deixa de conter um reflexo social. É nos sete poemas intitulados “Esfumadas Índias” que a referência histórica predomina sobre a referência individual e diarística e é neles e por eles que Maria Almira Medina ultrapassa a flutuação intimista-biográfica-familiar e se projecta como poeta de nível nacional. Em “Esfumadas Índias” desenha-se o fim do imaginário português que, desde o século XV, intentava encontrar fora de Portugal a redenção salvadora para um povo que nunca deixou de ser pobre, simples e rústico: “Quanta melancolia / nos inexprimíveis espaços das ausências subjacentes / quanta”. Porém, povo incapaz de viver sem uma “Índia” no horizonte, ainda hoje tenta encontrar fora de si, porventura na Europa, esse mítico Eldorado carregado de “maçãs e mel” que verdadeiramente só imaginou e nunca viveu. O sétimo poema deste ciclo é exemplar do estado de Portugal visto pelos olhos de Maria Almira Medina: “Presente o rosto / sempre / ausente / paraíso perdido onde quando adiado”, paraíso sempre sonhado, nunca encontrado.
E tal como Portugal sempre sonhou um paraíso que nunca realizou, assim a irrequietude revolta e lírica de Maria Almira Medina sempre sonhou uma Sintra e um Portugal repletos de liberdade, de justiça e beleza, que verdadeiramente nunca lhe foi dado viver.
Em 2009, a editora Casa das Cenas, de Sintra, republicou o livro Madrugadas – Poemas de Maria Almira Medina, editado clandestinamente em 1956 por um grupo de neo-realistas do Porto.
Neste livro, denotam-se as duas características acima sublinhadas da poesia de Maria Almira Medina – um acentuado lirismo (Esperança) e uma forte denúncia social (Revolta).
O lirismo evidencia-se tanto como nostalgia da infância quanto como desejo de infinito, dos sonhos infantis e juvenis não cumpridos, de uma existência que poderia ter sido benevolente e se revelou indigna, da tristeza de não se ter sabido lutar contra as “algemas” que acorrentaram a autora à normalidade da vida, quebrando-lhe o desejo de infinito. Nos primeiros versos de vários poemas ressalta este lirismo nostálgico e triste:
“O que me dói não sei” (p. 24)
“O meu cismar sabe a sal” (p. 27)
“Murcham flores nos jardins sonhados” (p. 23)
“Dói-me o perfume deste dia sem rosto, sem formas, sem desejo” (p. 17)
“A pomba branca bateu as asas no centro desta terra e perdeu-se nas nuvens” (p. 67).
Porém, a estes poemas carregados de sentimento de fracasso e impotência, acrescem outros carregados de força e de luta. Leia-se, por exemplo, o poema número 53, escrito em 1946:
“Eu vou à frente!
Cortem-me, embora, os braços, cortem-me a língua, cortem-me as pernas!
Eu vou à frente!
Gente que chora, chore atrás de mim, baixinho…
Eu vou à frente, a reclamar!
…” (p. 66).
Entre o lirismo e a denúncia social, detectam-se um terceiro grupo de poemas que classificaríamos, à míngua de outra definição, de realistas, alguns deles juvenilmente inspirados em Cesário Verde e Fernando Pessoa (Alberto Caeiro). O número 47, por exemplo, escrito em 1947:
“Domingo burguês à janela de casa,
Nem alegre, nem triste.
Ver quem passa – mais nada.
Ver passar a canalha dos becos
Na rua decente de gente decente:
Domingo burguês de sobrolho franzido à janela de casa.
Ver passar gente bem
De passagem pela rua de gente decente:
Domingo burguês de olhos invejosos à janela de casa.
No céu da cidade passeiam as aves.
Céu de estrelas e aves faz dores no pescoço.
Ver quem passa – mais nada.
Domingo gorducho, indiferente, imoral, à janela de casa.
Nem alegre, nem triste,
Ver a vida passar.” (p. 60)
Porém, custava ao estilo (e à personalidade) de Maria Almira Medina ser realista sem mais, aceitar e escrever uma descrição acrítica da realidade. Por isso, no antepenúltimo verso evidencia-se, de um modo fragoroso, a palavra “imoral”, que altera o sentido do poema, abandonando a neutralidade semântica, incorporando-o na denúncia social.
O mesmo acontece com o poema número 44. Após um conteúdo lírico, o último verso (“Mas, ao longe, atrás dos passos dos dois jovens, há veneno nas ruas, nas janelas e nos seios lassos das matronas” – p. 57), introduzido por uma adversativa, altera radicalmente o sentido lírico do poema, furtando-o a uma conclusão lírica, como se o poeta quisesse avisar que hoje – em 1949 – o lirismo deve ser envolvido num acto de justiça exigido pela revolta e denúncia sociais. Do mesmo modo, o lirismo que banha Sintra, no poema número 14, é igualmente envolvido pela denúncia social contra aqueles “que me tenha[m] algemado pés e mãos” (p. 25).
Cruzando as duas grande linhas que desenham o horizonte poético de Maria Almira Medina, o poema número 55 evidencia-se tanto como um dos mais belos poemas de Madrugada quanto como uma síntese da totalidade do livro:
“Quem sujou a terra de sangue e de gritos
Há-de lavá-la um dia com um cântico de libertação
E um gesto de caminheiro que chegou.
À sombra de uma árvore há-de parar a voz e o gesto
E adormecer três dias e três noites
Como nos contos dos meninos.
Ao despertar, outras árvores darão sombra a outras gentes
E tudo será flores e cânticos desconhecidos.
Nem uma lembrança antiga há-de quebrar o novo ritmo,
Que tudo foi perdido para sempre
No sono ansiado de três dias e três noites,
Como nos contos dos meninos. “ (p. 68)
Colares, Novembro de 2016,
Miguel Real.