Luís Filipe Sarmento nasceu, em Lisboa, a 12 de Outubro de 1956. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Jornalista, Escritor, Tradutor e Realizador de Televisão. Alguns dos seus livros e textos encontram-se traduzidos em inglês, espanhol, francês, italiano, grego, árabe, mandarim, japonês, romeno, macedónio, croata, turco e russo.
Produziu e realizou a primeira experiência de Videolivro feita em Portugal no programa Acontece para a RTP (Radiotelevisão Portuguesa). Coordenador Internacional da Organization Mondial de Poétes (1994-1995). Membro do International Comite of World Congress of Poets Presidente da Associação Ibero-Americana de Escritores (1999-2000). Coordenador para Portugal da World Poetry Movement. Participou em mais de 100 festivais, congressos e feiras internacionais.
Do Autor:A Idade do Fogo, 1975; Trilogia da Noite, 1978; Nuvens, 1979; Orquestras & Coreografias, 1987; Galeria de um Sonho Intranquilo, 1988; Fim de Paisagem, 1988; Fragmentos de Uma Conversa de Quarto, 1989; Ex posições, 1989; Boca barroca, 1990; Matinas Laudas Vésperas Completas, 1994; Tinturas Alquímicas, 1995; A Ocultação de Fernando Pessoa, a Desocultação de Pepe Dámaso, ensaio, versão portuguesa e castelhana, Las Palmas, 1997; A Intimidade do Sono, 1998; Crónica da Vida Social dos Ocultistas, narrativa, 2000, 2007, 2015; Gramática das Constelações, 2012; Ser tudo de todas as Maneiras, ensaio e antologia da obra de Fernando Pessoa no Livro/Cd «Mensageiros», Lisboa, 2012; Como Um Mau Filme Americano, narrativa, 2013; 40 Poemas 40 Pinturas (c/Luís Vieira Baptista), 2015; Efeitos de Captura, 2015; Repetição da Diferença seguido de Casa dos Mundos Irrepetíveis, 2016; Gabinete de Curiosidades, 2017, 2018; KNK, 2019; Operação Ulisses, 2019, narrativa; Ao Rubro (reúne toda a sua obra poética de 1975 a 2020)
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A obra “Ao Rubro”, recentemente lançada reúne a poesia de Luís Filipe Sarmento publicada ao longo dos seus 45 anos de vida literária, e ainda a primeira parte da obra inédita “Rouge”, a ser editada na íntegra em 2021, e foi o pretexto para uma conversa com o autor, cujo percurso a Alagamares acompanha há muitos anos.
“A resistência é o motor plástico para continuar a ser um artista fora do mainstream”
O Luís Filipe Sarmento está a celebrar 45 anos de vida literária. Aqui chegado, como se vê? Antevia-se no lugar onde está hoje?
Estes 45 anos a publicar livros encerram em si muitas vidas e cada uma delas com uma antevisão própria da sua circunstância. Em 1975, ainda estava deslumbrado com a eternidade da liberdade e com a possibilidade de me acontecer nela sem a claustrofobia da ditadura. O que contava, nessa altura, era o espaço de um dia como um processo de renovação constante. A leitura a céu aberto era fascinante e a descoberta de livros e autores interditos na ditadura era uma catapulta para o mundo das emoções descontroladas. Tinha de ser assim. O Pessoa dizia que queria ser tudo de todas as maneiras. Nessa altura, eu queria, naturalmente, experimentar tudo de todas as maneiras. Eu e todos os jovens que partiam para a descoberta do universo artístico em todas as dimensões. Com a guerra descartada, o horizonte que se nos oferecia estava no mistério da descoberta e este aspecto levou-nos a ser solidários e a estabelecer pactos de fraternidade que nos davam uma belíssima sensação de pertença. Aos 18 anos não se pensa no futuro. Nem se programa o presente. Ele simplesmente acontece. Hoje, vejo-me como um escritor que nunca esqueceu que a resistência é o motor plástico para continuar a ser um artista fora do mainstream, ou seja, um homem da liberdade que não se deixa seduzir pela troca de favores. Seria ética e esteticamente perigoso se me deixasse capturar por jogos de interesse que iriam interferir inevitavelmente no meu pensamento. E quando me olho ao espelho todas as manhãs vejo um homem livre que quer continuar a ser livre, o que o obriga a uma resistência permanente. E creio que a minha literatura reflecte este pilar que sustenta a minha existência.
Fale-nos da sua última obra
A minha última obra, Ao Rubro, é a compilação de todos os livros de poesia que publiquei nos últimos 45 anos. Ao contrário de muitos poetas que, legitimamente, renegam as primeiras obras do seu percurso, eu preferi, nesta compilação, mostrar a evolução estética, política e social que se foram transmutando ao longo das últimas quatro décadas e meia. Se os primeiros títulos exibem a frescura e o idealismo próprios de um jovem libertado de uma ditadura, os da segunda fase, digamos, apontam para uma busca espiritual mais estruturada, uma demanda de respostas a questões existenciais, a questionamentos que desequilibram o que seria de esperar de um jovem adulto; numa outra fase, deixo-me fascinar pelo experimentalismo neobarroco sem deixar de todo as temáticas da fase anterior. E há um livro de 1998 que resume tudo isto, criando, no entanto, uma entidade própria: A Intimidade do Sono. Segue-se um longo hiato na publicação de poesia em Portugal, ainda que fossem saindo livros meus por esse mundo fora, porque me entrego à paixão da ficção em prosa. Esta reunião de toda a minha obra poética contém também muitos inéditos, textos esparsos a que chamo Obscuros e algumas experiências que por qualquer razão foram abandonadas. Nunca deixei de escrever poesia ainda que dividisse os meus impulsos com a prosa de ficção, pequenos ensaios e artigos. Inicio uma nova fase em 2015 com Efeitos de Captura a que se segue, em 2016, Repetição da Diferença e Casa dos Mundos Irrepetíveis. Em 2017, lanço um híbrido com um tema comum, a hipermodernidade, Gabinete de Curiosidades, constituído por uma colecção de poemas a abrir, seguindo-se depois pequenos ensaios, manifestos e panfletos, acabando com uma ficção onde se experimentam vários registos. Em 2019, publico KNK que quer dizer, apesar de nunca ser explicitado em nenhum espaço do livro, Kant, Nietzsche e Kafka. É um diálogo que me propus fazer com alguns aspectos das obras desses autores. E este Ao Rubro reúne todos esses momentos que constituíram até hoje a minha produção poética, incluindo já a primeira parte de um livro que ainda estou a escrever, Rouge. Sim, em francês. Porquê? Porque me apeteceu.
Concorda com a ideia por muitos propalada de que um Poeta é um incendiário? Inflama ou é inflamado?
Já se acusaram os poetas de tanta coisa. Poderá ser um agitador de emoções e de revoluções. Antes de incendiar os leitores incendeia-se a si próprio. Poderá ser um provocador de sensações. Um guerrilheiro. Um assassino. Poderá ser tudo o que ele quiser ser ideologicamente, literariamente, socialmente, o que nem sempre é simultâneo com o que se pensa dele, sobretudo aqueles que nunca o leram. Jorge Luís Borges disse numa entrevista que as palavras podem definir um indivíduo, mas por vezes esse detalhe descobre-se muito mais tarde quando o próprio poeta já está num outro andamento, com novas palavras que o definem no tempo presente. Hoje, os poetas já não são incendiários porque são pouco lidos, entre nós. Noutras latitudes, a poesia tem uma dimensão impensável na realidade que vivemos em Portugal. Temos excelentes poetas e temos um mar de poetas que não lêem os poetas. Se assim acontecesse, a poesia seria o género mais lido em Portugal, o que não é verdade. Poderá inflamar pequenos círculos, mas tudo isso é efémero. E muitos incendiários deixaram-se consumir pelo fogo económico e ficaram perdidos na bruma do esquecimento. Hoje, as grandes companhias editoriais são máquinas de trucidar poetas e poesia. Resistem as pequenas e algumas médias editoras que conscienciosamente vão publicando alguns poetas. Eu creio, contudo, que há hoje mais leitores de poesia do que havia há vinte anos. Mas posso estar enganado. As redes sociais têm aqui uma grande responsabilidade. A divulgação da poesia e a sua análise não se limita hoje à imprensa tradicional que, como sabe, perdeu força e influência no mercado, está em todo esse universo infinito da Internet, o que proporcionou uma redescoberta do prazer de ler e escrever poesia. Tenho lido muitos jovens poetas portugueses e não só com propostas interessantíssimas, inovadoras e mesmo incendiárias que não têm visibilidade nos meios tradicionais mas que são consumidos nos meios digitais. E isso é extraordinário. A questão literária, a questão poética é e será sempre complexa. A literatura não existe sem mistério.
A Poesia tem algo de profético?
Nunca no tempo em que é escrita. Não era por acaso que se atribuía aos poetas essa qualidade misteriosa de vaticinar, nunca no seu tempo. Mas não creio que seja essa a função da poesia. Pelo menos, do meu ponto de vista. A poesia é o género literário que tem mais condições para alarmar, agitar, provocar, declarar e, por vezes, pressentir, não no sentido profético, mas socorrendo-se do conhecimento do processo histórico como um aviso ou um alerta. A Poesia é movimento. E sem o seu movimento a língua correria o risco de desaparecer. A Poesia move-se para fazer mover. E essa revolução liberta energia.
A Poesia é terapêutica, louca, visionária ou lucidamente disruptiva? É o quê, afinal?
A poesia é linguagem. Em todas as direcções. Por vezes, terapêutica se a sua leitura tiver esse efeito. Sinceramente, não sei o que é poesia louca. Poderá ser tudo isso se for entendida como tal por uns e exactamente o contrário por outros. A poesia interfere para o bem e para o mal com o corpo ideológico do leitor. Há poemas que são escritos e que escondem o que realmente existe e que poderá dar lugar ao que ainda não se conhece. Esse é o mistério da linguagem poética. Creio que a poesia não pode ser crença ou exactamente o contrário, mas estabelece um jogo ou um pacto com o leitor e ele aceita-o ou não e se não aceitar fecha o livro e arruma-o na estante.
Quem é o Luís Filipe Sarmento?
Sou um anormal. Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo. Creio que as pessoas têm horror a conhecerem-se porque se o fizessem nunca saberiam o que iriam encontrar. Para lhe responder a essa pergunta teria de conhecer o universo. E se o conhecesse teria provavelmente a condição de possibilidade para ser eterno. E isso seria assustador. Provavelmente, sou anormal. Não no sentido romântico do louco solitário que vive numa mansarda. Mas no sentido em que a norma entra em conflito comigo e eu com ela. A minha vida foi sempre feita de irregularidades e de inesperados. Tento buscar na diferença o que me entusiasma e me alimenta. Por vezes, paga-se um preço caro. Mas seria muito mais caro se fosse assumidamente um tipo que corresse atrás dos outros na esperança de que me tocasse um pequeno fulgor. A revolução permanente tem sido o meu caminho. E nele há momentos de plenitude como há momentos de profunda tristeza e raiva. A minha vida nunca foi um lugar-comum, antes a busca do que poderá ser novo. É isso que me move. E não a repetição, a cópia, a réplica, a imitação. Isso não me interessa nada. Contudo, sou um mundo de contradições.
O seu mundo é luminoso ou é feito de trevas iluminadas? E Sintra? É terra de Luz ou terra de trevas?
O meu mundo é luminoso porque tomo banho todos os dias. Leio. Escrevo. Lavo a vista em várias paisagens. Ainda assim, sou atacado diariamente com toneladas de merda que me lançam em cima. Daí a necessidade de tomar banho todos os dias. E de regressar à leitura, à escrita, ao pensamento. Estamos rodeados de líderes muito mal-educados, mal-intencionados, corruptos, que lançam merda em cima das pessoas. Ora o conhecimento, a leitura, a observação da arte são múltiplas formas de tomar banho para que a consciência não fique alagada de merda. Quando falo em revolução permanente nos meus textos é justamente para combater os produtores de merda e esse é o seu mundo, eles é que vivem nas trevas e rezam nos templos de merda. Ora ninguém pode lavar uma consciência de merda com banhos de merda. Mas o mundo que eu construo é luminoso. Sintra é um negócio esotérico. Sintra é o que cada sintrense quiser que ela seja. E como há umas décadas se tem vendido Sintra como uma terra de mistérios e de obscurantismos esotéricos, animando espíritos débeis em busca de pequenas aventuras que tragam algum tempero às suas vidas medíocres, o seu turismo sustentado numa magia contrafeita tem sido um sucesso. Por outro lado, o que me atrai em Sintra, para além da sua beleza, é a sua ficção, a sua narrativa de um mundo fantástico. O perigo é quando se acredita que essa ficção fantástica é real. Da Sintra dos montes carecas, áridos e rochosos à Sintra luxuriante e de mistérios assombrosos há uma construção de uma linguagem de efeitos artificiais. Mas não nego, que a ficção que se construiu à volta dos mistérios de Sintra seja um dos seus encantos mundanos.
“deus não existe. O que existe é a ideia de deus”
Existe Deus, ou deuses? É o homem o centro das coisas ou apenas um títere manobrado pelo destino?
Os deuses são as mais tenebrosas construções do medo aos poderes falaciosos ao longo da história da humanidade. Qualquer indivíduo racional sabe que deus não existe. O que existe é a ideia de deus. E nessa ideia reside o maior de todos os perigos: a destruição. Toda a actividade humana tem influência nos acontecimentos, donde o destino como um texto preexistente não passa de uma falácia que também é uma ferramenta utilizada pelas religiões que em vez de religarem o homem ao seu próprio centro espiritual o afastam de si, levando-o à destruição de si e de tudo o que está à sua volta. O homem é um predador selvagem e quando conjuntamente se serve do mal para o seu bem demonstra com transparência o conflito que mantem com a inteligência.
Como vê o mundo pós-Covid?
Não vejo. Não faço a mínima ideia do que será o mundo depois da pandemia passar. Nem tenho a certeza de que vá passar rapidamente. O que virá depois só dependerá da inteligência ou falta dela do homem. Tenho saudade de abraçar os meus amigos. Como veria idealmente o mundo pós-Covid? Como um imenso abraço. Mas temo que se esteja a preparar uma guerra gigantesca que dê mais um passo na destruição da humanidade. Regressemos à revolução permanente: as populações não podem abandonar as ruas para que um dia possamos viver numa democracia inteligente e não numa falsa democracia cujo aparato é a exibição da sua musculação. Ora, isso não é democracia. Vivemos sob regimes cleptocratas e só a revolução permanente das consciências populares poderão derrotá-los. É uma utopia? Será. Mas a revolução não é.
O que ainda não fez que não quisesse deixar de fazer?
Viver num hotel.
Quem são os poetas estrangeiros e portugueses que mais aprecia?
Gosto de muitos poetas portugueses e estrangeiros. Fazer uma lista era criar um cânone pessoal o que seria de uma arrogância sem sentido porque o que há por descobrir é imenso. Seria ao mesmo tempo dar espaço ao lugar-comum, ao que toda a gente diz. Não, não me apanham nessa armadilha. Todos os dias me surpreendo com poetas, com escritores, com pintores e escultores, com bailarinos e actores, com músicos e compositores.
O Luís Filipe Sarmento esteve ligado em Sintra nos anos 90 à realização dum Congresso Mundial de Poetas. De que falam os Poetas quando reúnem?
Falam de si.
“Os agentes culturais de Sintra terão de ser visceralmente revolucionários”
Uma mensagem para os agentes culturais de Sintra
Que façam o seu trabalho com paixão à margem dos caciques cuja missão é destruir o que os agentes culturais querem construir através de seduções pornográficas, promessas que nunca cumprirão, lugares efémeros. O cacique de Sintra é o mais perigoso dos vírus. E espalha-se nos pulmões das instituições através dos seus apaniguados que vulgarmente são ignorantes. Os agentes culturais de Sintra terão de ser visceralmente revolucionários se quiserem transformar Sintra naquele que poderia ser o mais importante polo cultural do País. Se iniciarem esse processo contarão comigo.
Entrevista de Fernando Morais Gomes
Fotos de José Lorvão