Voltou a cabeça e o olhar para a janela. Sorriu.
Maio. Junho?
O castanho dos carvalhos, resto do Outono, cedera ao verde claro. À folhagem de Primavera.
Mais adiante, alguns pinheiros. Verde escuro.
E o mar? Não, dali não se avistava o mar. Ficava longe, muito, muito longe.
O mar era uma recordação.
Pois era.
Das férias. Dos dias grandes das férias.
Recordação de navios a afastarem-se para lá do horizonte. Se o horizonte fosse verdadeiro.
Da praia. Da areia a agarrar-se-lhe aos pés. Das ondas a rebentar ainda cheias de força. Ou a chegarem-se por perto já brandas. Brandamente.
Os mergulhos, as braçadas, as bolas-de-berlim que a mulher da bata branca apregoava,
“Dez tostões… Dez tostões… Olha a bola! Quem compra?…”
Açúcar, sol.
E ela, as primas, os primos estendidos nas toalhas, a melanina libertando-se-lhes na pele.
“O teu bronze…”,
“…o meu bronze!”
Lembranças.
Lembrança da Queta que só conhecera naquele ano, e lhe dizia,
“Não o deixes escapar!”
Escapar? Quem?
O Mico, com quem dançava sempre que havia dança. Mico de olhos escuros que dançava mal. E a ignorava quando não era para dançar.
Às vezes ainda pensa nele. Sorri.
“Tu e ele hão-de casar!”,
“ É só tu quereres…”
Descaíram-lhe os ombros, pelo espaldar do cadeirão.
Segurou no colo a bolsa dos óculos e das recordações. Sorriu.
“Não o deixes escapar…”
Naquele tempo, ainda não sabia o que fazer para que um rapaz não lhe escapasse.
Dizer-lhe o quê? Que nunca esqueceria aquele seu olhar escuro? Mas só com o tempo, só agora, ela sabia que não esquecera.
Dar-lhe a mão? Dava-lha, quando dançavam. A sua mão direita, na esquerda dele. E um dia, num fim de dia, indo os dois pela beira-mar fora ele a dar-lhe a mão. A mão esquerda dela, na direita dele. Dedos entrelaçados.
“Olha…”
Búzios, que a maré trouxera e espalhara pela areia. Búzios miúdos com que poderia ter feito um colar, se os tivese apanhado. Não apanhara.
Ela, não. O Mico, porém, de joelhos dobrados escolheu um dos búzios maiores. Espiral claro-escura, bordos nacarados.
Ofereceu-lho de joelhos ainda dobrados, e olhos levantados para os dela. Aceitara a sorrir. E continuaram, rente ao mar, como se fossem namorados.
Mas não eram, nunca chegaram a ser.
Não se tinham reecontrado, depois dessas férias.
Dissera-lhe a Queta que era só ela querer. Mas como? Tinham voltado às aulas. Ela em Lisboa, ele nos arredores, e nem sequer pelo telefone falavam.
Nas últimas folhas de uma sebenta, esrevera que tornaria a dar-lhe a mão, se ele quisesse dançar. Bilhete de amor. Seria? Nunca o pôs no correio.
Estava-se no Outono da gripe asiática.
De princípio, ninguém lhe deu grande importância. Dores pelo corpo, febre alta, uns dias na cama, bem agasalhados. Haveria de passar.
Entretanto, pneumonias e outras complicações. Escolas fechadas, festas proíbidas. Mortes, mesmo assim.
“Foi-se a minha avó Guilhermina…”
“Oh, coitada…. Já tinha quase noventa anos. Não tinha?”
Pois tinha. Mas a mãe da Manecas, que ainda não fizera quarenta, também se fora. E outros, outros.
Quantos mortos? Nunca se chegou a saber quantos. Estava-se em 1957, censuravam-se as notícias, riscando quem morria. Escondendo que nem todos os que adoeciam tinham médico. Nem sequer onde se agasalhar.
“Mico! O Mico…”
Foi pela necrologia da jornal que veio a saber da morte dele.
A família e amigos participavam que falecera, em casa. Morte natural, ao que parecia, muitos anos depois da epidemia da asiática.
Deixava filhos, netos, mulher. Esposa-viúva, com direito ao nome por extenso, na participação.
“A Queta! Afinal…”
Afinal as recordações eram conchas que o mar atirava para a areia. Vazias, ainda que lhes ficasse o nacarado.
E a Queta soubera, sabia, como não deixar escapar o rapaz que lhe interessava.
Tremeu.
Tornou a olhar a janela. O verde-claro dos castanheiros.
Junho. Seria Junho?
Sentiu frio. E outra vez o tremor que a percorreu por dentro, e lhe fechou os olhos.
“Narcisa, depressa!…”
Ela descaída, no cadeirão. Boca aberta, olhos fechados.
“Doutor!”
O oxigénio, o ventilador!… A enfermeira a gritar à auxiliar,
“Despache-se, mulher!”
Vieram todos. O médico, mais enfermeiros, os outros auxiliares. Trouxeram soro, oxigénio, seringas e o ventilador. Também as máscaras, as caixas das luvas e as das compressas.
Fizeram o que se faz, em ocasiões como aquela, para que voltasse a si. E fizeram-no bem, como sempre. Para isso tinham sido treinados.
“Respira…”,
“Inspira!”,
“Respira…”
Mas talvez já não respirasse.
“A ambulância!”
Levaram-na.
Mais nada.
Recolheram, em silêncio, o ventilador e os outros apetrechos.
A enfermeira separou as luvas das máscaras. Atirou para o lixo o que não prestava. E recomendou à auxiliar que ficasse alguém a orientar a equipa da limpeza.
“Posso ficar eu…”
A Narcisa. Antes que viessem os aspiradores e pulverizadores, deu uma volta pela sala. Foi da porta à janela,
“Ah!”
Uma bolsita de veludo caída, no chão. A bolsa dos óculos que ela trazia sempre consigo.
Não haveria mais alguma coisa, lá dentro? Dinheiro? Muito não seria, mas…
Abriu. Tinha os óculos, um lenço amachucado e uma pedrita. Uma pedra?
Não. Parecia um caracol claro-escuro, já muito roçado. Mas não era um caracol.
Fora um búzio, noutro tempo.
Sintra,
Junho / 2020.
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