O claro entendimento do sítio – tratava-se, na aceção de Raul Lino, de interpretar o “espírito do lugar” –, bem como a elaboração do projeto de acordo com as necessidades do utilizador constituem aspetos marcantes da obra arquitetónica em questão (concebida em 1926). Não são, de igual modo, de ignorar alguns dos traços idiossincráticos da produção de Raul Lino (o recurso a materiais tradicionais, a utilização do alpendrado…).
Exmo. Sr.:
Ao prazer de ter feito o conhecimento de V. Ex.ªjunto agora o gosto de poder ler a sua obra. Devo isto à gentilíssima oferta a que se dignou juntar frases muito penhorantes para mim e palavras de excessiva modéstia a seu próprio respeito. De ambas as coisas posso afirmar que são imerecidas.
Procurarei dar alguma satisfação aos seus novos sentimentos no projeto que vou elaborar para a casa de V. Ex.ª pedindo à musa da arquitetura – que algumas vezes tem sido benévola para mim – que me inspire e que supra as falhas que V. Ex.ª terá fatalmente de descobrir.
Deste seu admirador
Atento e obrigado
Raul Lino
Antevista tal cumplicidade, não surpreende que Raul Lino tenha, de facto, consagrado especial atenção às necessidades do utilizador. O resultado transparece mais tarde na própria obra do escritor, que em páginas dos romances A Garça e a Serpente (1943), Primavera Cinzenta (1944), Cárcere Invisível (1949) e Promontório Agreste (1973) recorre aos cenários de sua casa, ou deles experienciados:
Passaram, pouco depois, da penumbra da sala ao alpendre cheio de ouro […] Estavam os três diante do vasto panorama. A serra, vestida de veludo verde, ondulava sobre o azul muito puro, mordia-o no alto com os dentes do seu castelo mourisco, e ia esmorecer ao longe nos retalhos verdes e castanhos da planície, que se estendiam até ao mar anilado. Perpassava uma aragem macia. Um comboio apitou algures, no silêncio da terra.
(Francisco Costa, A Garça e a Serpente, 1969, 4.ª edição, p. 229)
Durante momentos, o meu visitante ficou-se imóvel, com o olhar fito nas brasas que morriam. Mas de repente sacudiu-se, pôs-se de pé:
– O seu lume é fascinante, confesso… Mas as rotativas não param e eu tenho de voltar à cidade… ou antes à aldeia de mármore e granito, enquanto você aqui fica, na serra da lua, que hoje é sobretudo serra de névoa.
– Hoje e muitas vezes mais – observei, encaminhando-o para o alpendre, onde a nossa conversa principiara […]
– Não há dúvida – suspirou ele, como no primeiro dia. – Aqui podem-se escrever romances e refletir sobre a poesia deles.
(Francisco Costa, Diálogos Estéticos, 1981 [texto de 1957], p. 196)
Mas o escritor não se deixou arrastar; e abrindo a sua porta, passou da casa ao alpendre, a fim de sonhar, em frente da serra da lua, o seu futuro romance – que decerto lhe faria as costumadas surpresas.
(Francisco Costa, Promontório Agreste, 1973, p. 345)
Quando esta casa, feita mesmo em frente
da serra verde, ainda mal se erguia,
e as traves da futura moradia
eram belos pinheiros, simplesmente,
houve uma tarde, sob um sol ardente,
em que o suor em bagas escorria
da testa dos pedreiros e fazia
da cal e areia uma argamassa quente.
mas é cá dentro que soltamos ais
nos dias mais aflitos ou mais duros.
Enquanto gemem temporais lá fora,
pagamos nós em lágrimas, agora,
a dor incorporada nestes muros.
(Francisco Costa, Última Colheita, 1987, p. 13)
(*)Carlos Manique da Silva nasceu em Lisboa, em 1963. É doutorado em História da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (2008). Atualmente é diretor do Centro de Formação da Associação de Escolas Rómulo de Carvalho (Mafra). Foi professor visitante nas Universidades Estaduais de S. Paulo e de Santa Catarina (Brasil).