uPor Eugénio Montoito
[omeumar-manuel.blogspot.com]
Nestas últimas semanas tenho ouvido saberes, lido manifestos e trocado conversas com amigos, colegas e conhecidos sobre o estado do Património de Sintra e a sua atribuída universalidade. E em conclusão de resultado, posso afirmar que as opiniões que nos distanciam são, infinita e proporcionalmente menores ao sentimento que nos une por este espaço, por estas pedras, por estas gentes, enfim, por estas memórias.
Ora, nesta minha ocupação e trato do Património Documental Sintrense encontrei um parecer do Arquitecto Raul Lino, no papel de Superintendente Artístico dos Palácios Nacionais, datado de 16 de Junho de 1953, remetido ao então Presidente da Câmara Municipal de Sintra, Dr. César Henrique Moreira Baptista, sobre uma projectada intenção de modificação do sistema de iluminação eléctrica do Largo da Rainha Dona Amélia, junto ao Palácio Nacional de Sintra.
É, de facto, interessante verificar que as preocupações de intervenção e enquadramento urbanístico da Vila Velha, independentemente da especificidade do parecer ser sobre a iluminação, feitas pelo Arquitecto Raul Lino, possuem uma actualidade impressionante, apesar de terem sido manifestadas há sessenta e dois anos atrás, num contexto de reconhecimento turístico-cultural limitado à época e sem a responsabilidade de estarmos perante um lugar classificado de Património Mundial.
Também é uma verdade que a Vila Velha de Raul Lino não era, ainda, o “bazar comercial” que nos é dado a ver, nos dias de hoje. Havia uma equilibrada convivência entre urbe humanamente ocupada por uma população residente e vivente do espaço e os turistas visitantes que vinham à procura do pitoresco e da diferença que a cultura e a memória sintrense lhes podiam proporcionar.
A intemporalidade do escrito de Raul Lino, observada logo no primeiro parágrafo do seu texto, leva-nos a tomar palavra pela exigência de uma urgente atitude de mudança de mentalidade e de comportamento de quem tem o poder decisório de fazer algo que não se fique por meras e simpáticas pinturas de esforço de ocultar o defeito, porque, o resultado final será sempre de pô-lo em maior evidência.
Regressando à leitura do acontecimento de cinquenta e três, o Projecto da Câmara Municipal, proposto pelo Vereador Rui Garcia Coelho da Cunha(1) , pretendia, para além da alteração da potência das lâmpadas, substituir os vidros foscos dos candeeiros colocados na frontaria do Paço por vidros lisos, colocar um candeeiro-de-pé, com quatro lâmpadas, no meio da praça e outros dois braços nos cunhais dos prédios de Joaquim António Vitorino e da família Cosme, em substituição das lâmpadas penduradas que atravessavam a praça, como ainda, colocar quatro lanternas de estilo “Dom João V” na muralha fronteira ao Palácio e nove candeeiros, vulgarmente conhecidos “tipo americano”, nos passeios fronteiros aos prédios de Abílio Alfredo Cardoso, Hotel Central e Hockey Club de Sintra, até à barbearia “Nelo”.
Esboço encontrado no Fundo Documental “Consiglieri Martins”(2)
O mesmo vereador, Rui Cunha, voltará com este assunto a reunião de Câmara, em 16 de Abril de 1953, propondo que o município oficializasse o Director-Geral da Fazenda Pública, solicitando-lhe resposta aos ofícios remetidos a requerer parecer sobre a sua deliberação de mexer na iluminação pública, tanto no Largo da Rainha Dona Amélia como noutros espaços da Vila. Julgamos, deste modo, que o presente parecer do Arquitecto Raul Lino seja a resposta ao projecto, subscrito pelo vereador Rui Cunha.
Através da leitura do documento ficamos a saber que o parecer de Raul Lino provocará um despacho escrito do vereador da Câmara de Sintra, a 26 de Junho, dirigido para o serviço de obras municipais, afirmando que não existem dúvidas que o Largo da Vila carece de luz eléctrica, devendo ficar a solução do problema a cargo dos “técnicos”, pelo que sugere que este estudo seja entregue nas mãos de um especialista.
Rui Cunha demonstra, deste modo, o seu silencioso desagrado pela interpretação, feita pelo arquitecto, do projecto apresentado pela Câmara ser de uma banalidade, aplicando na resolução dos problemas da Vila de Sintra a mesma solução utilizada nas mais recentes criações urbanísticas da região, nomeadamente no estilo das últimas espécies que surgiram na linha de Lisboa a Sintra.
O conceito de leitura de Sintra-Vila, acrescido actualmente, de Sintra-Serra e consequentes zonas envolventes, teve, tem e terá, sempre, de ser visto com a sensibilidade e a consciência de que estamos perante uma criação, sobretudo, artística, não confundindo este espaço que o homem e a natureza construíram, o primeiro com a sua arte e o seu engenho e, a segunda, com a sua grandiosidade e exuberância, com o que possa ocorrer em povoações anónimas, sem características, sem história, sem feição pitorescas, sem tradições.
A solução definitiva da iluminação pública, aplicada no Largo Rainha Dona Amélia, não volta a ser discutida em reunião de câmara, diluindo-se o “problema” nas razões das oportunidades financeiras e nas prioridades do município em alterar e melhorar a rede pública. Os apontamentos do Consiglieri Martins, encontrados nas suas pastas, dão-nos uma leitura de procura de compromisso estético na aplicação do tipo de candeeiros, colocados na Vila Velha e as imagens fotográficas de época descansam-nos sobre as soluções esquecidas.
Sintra na década de sessenta do século XX
Apontamentos de Consiglieri Martins
Candeeiro na fachada do Palácio Nacional de Sintra
Paralelamente, e sem querer ajuizar valor estético nem opinar sobre aplicação artística, deixamos em total interrogação de propósito quatro desenhos de José da Fonseca, datados de 1951, identificados como «Estudos para o Candeeiro para o Largo Rainha Dona Amélia, em mármore e ferro forjado», encontrados no acervo documental de Consiglieri Martins.
Esboços do candeeiro no Largo Rainha D. Amélia, em mármore e ferro forjado, de José da Fonseca (1951)
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PARECER DO ARQUITECTO RAUL LINO
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MODIFICAÇÃO DO SISTEMA DE ILUMINAÇÃO ELÉCTRICA DO LARGO DA RAINHA D.AMÉLIA, A PAR DO PALÁCIO NACIONAL DE SINTRA – PROJECTO
INFORMAÇÃO
A primeira impressão que e Projecto nos dá é a de que teria sido gizado para qualquer terra, menos para a Vila de Sintra. Verdade seja que a praça principal desta estância já está de tal maneira descaracterizada, que admitiria qualquer tratamento sem probabilidade de com isso ficar mais feia do que por desventura já é. Mas não devemos perder a esperança de um dia melhorar as suas condições e de tentar restabelecer a feição particular do seu antigo e desaparecido interesse, que era do género pitoresco, embora nesta condição se inclua a monumentalidade do seu velho Paço Real.
Certo é que não será a ciência da luminotecnia que possa resolver o problema da fealdade a que aquela praça chegou; a não ser que se resolvesse deixar tudo na escuridão e se fizesse apenas incidir um clarão luarento sobre e venerando Palácio. Mas não trata aqui de cenário de teatro; importa na realidade iluminar pelo menos de maneira suficiente as faixas de rodagem de uma vila com certo movimento de veículos. Isto não quer dizer de modo algum que se deveria inundar de luz o centro da Vila, como se poderia depreender do projecto que estamos analisando. Quem sofre de qualquer deficiência na sua indumentária, e que disso tem plena consciência, esforça-se por qualquer maneira por ocultar o defeito, não procura pô-lo em maior evidência. O casario da praça – na sua maior parte – está a pedir árvores que o escondam durante o dia, como que aguardando com impaciência as sombras da noite em que a sua miséria possa mergulhar, miséria de qualidade artística, e não pobreza material que muitas vezes é simpática e pitoresca.
Vai para três anos, a pedido do Exmº. Presidente da Câmara de então, pelo amor que temos àquela terra, tivemos ocasião de elaborar uma nota em que passávamos em revista todas as casas do Largo da Rainha D. Amélia, preconizando ou receitando para cada uma o mínimo de obras indispensáveis para a tornar menos agressiva ou mais aceitável aos olhos do transeunte sensível. Com a nossa experiência resultante do uso obrigatório da mais apertada economia em trabalhos profissionais, conseguíamos uma certa depuração por meios relativamente baratos, e a Vila ficaria com outra fácies, mais amável e menos pelintra.
Isto é apenas para lembrar quão desejável é o corregimento do que se pode chamar os elementos essenciais existentes, em face das prováveis reacções da sensibilidade artística do turista, que é quem devia trazer maior rendimento à terra e quem se encarrega eventualmente da sua propaganda gratuita, desde que o saibam cativar.
O que não vejo no presente projecto de iluminação, é este propósito de entrar no corregimento da banalidade, de que a Vila de Sintra cada vez mais carecida está. Pelo contrário, parece obedecer à corrente que domina nas mais recentes criações urbanísticas da região, nomeadamente no estilo das últimas espécies que surgiram na linha de Lisboa a Sintra.
No plano apresentado para as multifárias fontes de luz, há um pormenor que deixa ver iniludivelmente o mal-entendido em que se está laborando – é a indicação de que nos lampiões existentes no terreiro à frente do Palácio se substituiriam os vidros “Catedral” por outros vulgares e transparentes. É claro que a Direcção dos Serviços dos Monumentos Nacionais, quando ali mandou colocar os actuais lampiões, com seus vidros “Catedral”, soube o que fazia. A ideia não chegou a ter originalidade; pode ver-se na Capital, aplicada a candeeiros nas arcadas do Terreiro do Paço, à frente do Teatro D. Maria II, da Igreja de S. Roque, da Igreja da Madalena, etc. É que os problemas da iluminação não se limitam a inundar tudo de claridade, evitando penumbras ou projecções de sombra. Junto de monumentos, em lugares que por qualquer motivo infundam respeito, perante uma bela paisagem ou no meio de algum aglomerado pitoresco – o problema é de ordem artística antes de interessar a luminotecnia.
No presente caso, não importa iluminar por igual todos os decímetros quadrados do pavimento, nem derramar uma luz brilhante por toda a ambiência. Se nos perguntassem como imaginaríamos uma iluminação do Largo da Rainha D. Amélia, adaptada às condições deste lugar público, diríamos: enquanto a maioria do casario que o circunda ostentar a barbárica fealdade que o caracteriza, seria muito de desejar que houvesse uma ou mais “esplanadas” na praça (lugares onde se servem bebidas), iluminadas no género a que internacionalmente se chama à Veneziana, que constituíssem focos principais de iluminação. Além destes núcleos de claridade e animação, criar-se-iam as necessárias fontes de luz para uma iluminação modesta e discreta da via pública, contando não com as correrias de automóveis em trânsito acelerado, mas apenas com a sua passagem muito pausada, como é próprio e convém em trajectos através de vias tortuosas em Vilas históricas. Quanto a focos de luz fixados no Monumento Nacional, não os julgo necessários, e no que respeita aos lampiões existentes na vedação do terreiro, não se lhes deve bulir nos vidros, que estão muito bem, mais importando para o efeito turístico que os alegretes se mantivessem sempre floridos e impecáveis de tratamento, o que infelizmente até hoje ainda se não conseguiu.
Mais diremos que a multiplicidade de postes, à parte o seu aspecto banal, nos parece inconveniente, e que julgamos se poderia iluminar com vantagens os sítios de maior passagem por meio de lampiões (do tipo dos do terreiro) suspensos de fios transversais, ou eventualmente de simplíssimas e despretensiosas polés, onde as circunstâncias o aconselhassem.
O que me parece necessário é encarar o caso como um problema, sobretudo, artístico; não o confundindo com o que possa ocorrer em povoações anónimas, sem características, sem história, sem feição pitoresca, sem tradições. – O mais leve relance da vista por sobre as publicações, nomeadamente as de propaganda, que – por exemplo – os países como a Itália, a Inglaterra, a Áustria e a Alemanha – estas não obstante a recente guerra –, nos continuam a apresentar, bastam estes testemunhos para nos trazer à memória como o espírito de turismo na velha Europa deve ser compreendido.
Não se julgue que não haja por cá entre nós quem vislumbrasse estes aspectos. No capítulo de iluminação pública, não nos envergonham certas realizações experimentadas com êxito em Évora, em Viana do Castelo, em Guimarães e porventura em outras terras mais.
Lisboa, 16 de Junho de 1953
O Superintendente Artístico dos Palácios Nacionais
Arquitecto:
(Raul Lino)
…»
(1)Acta da Reunião de Câmara de 28 de Novembro de 1951, Livro nº50 fólios 158-158V-159.
(2)Este documento não está datado. Contudo, considero que pode ter ligação com o projecto do vereador Rui Cunha, pelo simples facto de estar inserido num conjunto de documentos, onde aparece a data de 1951.