O mar a subir, empurrado pelo vento. Pelo vento.
Vento!
As ondas e as gaivotas indo acima, voltando para baixo. Muito alto, muito baixo.
A repetir,
Acima!
Abaixo!
“É o Inverno a chegar!”
Era. E na janela da casa por cima da arriba, a cara da senhora que tricotava,
“Gosto tanto de fazer malha… Tanto!”
Rente à casa, a extensão do carvalhal interior. Carvalhos-roble a perder a folhagem. E as folhas a rodopiar com o vento.
A velha senhora, rente á vidraça fosca de salitre. Almofada na cadeira de balanço. Agulhas de madeira aparada, novelo de lã dobada à mão.
Conhecem-na, as gaivotas?
Conheceriam, se fossem sempre as mesmas picar a espuma das vagas. O abaixo-acima das marés.
O vento, o mar,
“O Inverno!”
“Avó!”
“Lucas…”
“Avó!”
“Mateus…”
Sim, eram eles!
Almofada da cadeira para o chão. Agulhas cruzadas, lã atirada para a cesta,
“Vocês!… que bom já terem vindo!”
Não os esperava naquele dia,
“Só lá parra a noite das couves e do bacalhau…”
Eles, os pais, os tios e as primas.
“Oh avó…”
“Nós tínhamos de vir hoje!”
“Hoje…”
Renascia Belenus, deus celta do Fogo e do Sol.
Deus desaparecido nos princípios de Outubro que voltaria, como sempre, num dado momento desse dia.
“E os da Roma antiga…”
Esses festejavam Saturno com banquetes, dedicando-lhe o vinho das ânforas que lhes escorria bocas abaixo. Trocando presentes. Dançado.
“E as couves com bacalhau, avó…”
“Isso…”
Entretanto, o escuro da tarde avançava pela porta da rua escancarada pelo vento.
“Bem, vocês já cá estão… ainda bem!”
A ternura do reencontro, enquanto um deus renascia. Que mais poderia desejar a velha senhora?
“Avó?…”
A avó tornara à malha,
“…cinquenta e dois, cinquenta e quatro, cinquenta e…”
Contava, com a ponta da agulha, o que lhe faltava para o fim da carreira. Lã macia, cor de marfim. O que estaria ela a tricotar?
“É para as vossas primas…”
Dois casaquinhos de dormir,
“Um para a Carlota, outro para a Maria. Para elas terem com que se agasalharem, nas noites que aí vêm…”
“E para nós?…”
“Ai avó… Também vamos ter frio!”
Ah, para o Lucas e para o Mateus, a avó já tinha feito uns gorros,
“Lembrei-me de que até os podem usar para ir à praia…”
Belos gorros! Lã castanha, ponto canelado. Comprimento de sobejo para dobras e refêgos.
“Obrigado, avó!”
“Muito obrigado…”
Carapuços cabeça abaixo, assim se deitaram, nessa noite. Puxaram os cobertores, enrolaram-se melhor. Adormeceram.
Lá fora, as gaivotas em silêncio.
A maré atirava com as vagas para as arribas. E com elas, a força de Beleneus. De Saturno,
Acima! Abaixo! Acima…
Pela borda do carvalhal, com o vento, iam e vinham as folhas.
Filomena Marona Beja,
Sintra, Novembro/2022.