GIANT, de Mikaël
Este livro de Banda Desenhada (edição integral dos dois volumes originais), agora editado pela Ala dos Livros, de argumento e desenho de Mikaël, transporta-nos, na máquina do tempo da história, para uma América a sair da Grande Depressão e ao mundo dos imigrantes que trabalharam na construção dos
arranha-céus nova-iorquinos.
Conduzida pelo grafismo impressionante de Mikaël, Giant é, na realidade, um comovente relato sobre a imigração e as manifestações fantasiosas do sonho americano. Uma apaixonante narrativa, que se desenrola na sombra dos arranha-céus da grande cidade que nunca dorme, onde imigrantes provenientes de todas os cantos do mundo arriscam a vida na construção do mítico Rockefeller Center.
Giant, um misterioso e silencioso colosso irlandês, é um dos inúmeros trabalhadores anónimos que labutam, árdua e perigosamente, em cima daquelas vigas metálicas suspensas no vazio das alturas abismais das construções de uma Nova Iorque em plena reformulação arquitectónica e expansão urbanística vertical, resultante do minguado espaço urbano em largura de Manhattan, a par de uma manifestação do poder de recuperação do modelo capitalista.
As condições de trabalho são precárias e perigosas. A uma média de edificação de dez andares morre um operário por acidente e é norma serem os trabalhadores da equipa do acidentado a comunicar com as suas famílias para lhes darem a dramática notícia. É neste enquadramento factual que ficamos a
conhecer uma dessas equipas de trabalhadores, de origem irlandesa, que tendo procurado fugir da miséria de vida e de uma guerra, primeiro independentista e depois civil, na sua terra natal, emigraram para os Estados Unidos da América em busca de oportunidades.
São trabalhadores que, na sua maioria, vivem em habitações e bairros podres periféricos e aceitam trabalhos na construção civil, tentando amealhar o necessário para que as suas famílias possam vir ao seu encontro ou, pelo menos, viver em condições mais dignas na sua Irlanda longínqua.
A personagem Giant é um destes trabalhadores fugidos da tormenta irlandesa das primeiras décadas do século XX. Ele, é um indivíduo que detém uma figura que se destaca pela sua dimensão possante, a par de uma característica silenciosa e fechada ao meio em que se move. Quando o seu colega, cravador de
rebites, morre na obra, Giant fica com a responsabilidade de escrever à viúva e de lhe remeter o cheque de indemnização do sindicato. Porém, invés disso, Giant escreve uma missiva diferente, escondendo a realidade e dando continuidade de vida ao seu camarada de trabalho. A sua imoral atitude de apropriação
do nome de um morto é resultado do reencontro com o conforto e a força, escritas nas cartas dirigidas ao seu camarada defunto, vindas de uma mulher, que não sua, mas reconhecida como tal na sua saudade e memória.
Imagem intitulada “Almoço no topo de um arranha-céu” e considerada uma das fotografias mais icónicas do século XX. Durante muito tempo a fotografia
foi atribuída a “fotógrafo desconhecido”, outras vezes, erradamente classificada como de Lewis Hine, em 2003 acabou por ser creditada a sua
autoria ao fotógrafo Charles C. Ebbets.
O peso das cicatrizes do passado que persegue e atormenta Giant e o condena ao refúgio do silêncio, tão próprio de quem tudo perdeu, impõe como tábua de salvação a crença de que a vida tem de ser justificadamente mais simples, apesar do seu destino poder estar envolvido numa mentira piedosa, pelo que o envio de palavras de esperança, mesmo que dactilograficamente escondidas na sua identidade, numa caligrafia de máquina e de algum dinheiro para as necessidades dos tempos, são uma justificação perfeita e benevolente na sua razão de apaziguar o seu solitário sofrimento.
Giant é uma dupla e paralela história, de um tempo e das suas envolvências e, paralelamente, de um homem em fuga das suas lembranças. Novela escrita e desenhada num traço manifestamente carregado de expressividade e de sensibilidade que nos remete, constantemente, para a fragilidade do ser humano
e do recorrente despropósito em que todos nós caímos quando ajuizamos e declaramos imoralidades imperdoáveis.
Conforme Jean-Louis Tripp escreve no prefácio publicado na edição portuguesa Giant proporciona o fim do anonimato dos operários que trabalharam na construção dos arranha-céus nova-iorquinos, dando uma nova perspectiva aos retratados, em Setembro de 1932, durante o seu período de pausa para almoço,
sentados numa viga suspensa num dos andares do RCA Building no complexo do Rockefeller Center publicado nas páginas do New York Herald Tribune.
Este confronto entre os dois mundos vividos pelos trabalhadores emigrantes, o de origem irlandesa e o presente nova-iorquino, é graficamente visível no registo da recepção e momento de leitura da correspondência trocada entre Giant e a viúva do colega. Os dois ambientes, o urbano de Manhattan e o rural irlandês, são opostos sensorial e visualmente. O ambiente citadino americano é representado de forma sombria, entre os castanhos e os cinzentos, enquanto as paisagens rurais são verdes, abertas e carregadas de tons naturais. Em ambas, denota-se a frieza da pobreza vivida pelas personagens, compreendendo-se as dificuldades reportadas às zonas rurais pela ausência e pelo propósito de saída, enquanto a cidade é preenchida por uma aura dolorosamente dura e doentia.
Apesar disso, a narrativa de Giant consegue ser cativante pelo facto de estar associada a uma ideia humana de resiliência e procura de novas oportunidades consolidada na esperança de uma vida melhor. Formas de estar e sentir retratadas nos desenhos de Mikaël, mas que acabam por ser intemporais e idênticas nos sentimentos de todos os emigrantes na sua procura de oportunidade quando se lançam nos seus novos mundos.
Esperamos que Giant não seja, apenas, mais uma boa leitura que se perde por passar despercebida, porque para além de ser uma homenagem fabulosa ao papel do emigrante, é, de facto, uma obra de qualidade, quer a nível narrativo, quer a nível visual.
SOBRE O AUTOR
Segundo os sites principais de apresentação (e venda), o autor do Giant, Mikaël, é um desenhador autodidacta franco canadiano, com trabalhos de banda desenhada publicados desde 2001. O seu portefólio regista um conjunto de contos juvenis e ilustrações para livros infantis, nos quais assina
simultaneamente o argumento, o desenho e a cor.
Cronologicamente o seu trabalho recebeu, em 2010, a menção especial do Júri Juvenil do Prix d’Ouessant (França), para a obra “Félice et le Flamboyant Bleu” e duas vezes, em 2015 e 2016, o Grande Prémio da cidade de Quebeque, Canadá, respetivamente para “Promise, volume 2: L’HommeSouffrance” e “Promise, volume 3: Incubus”, trabalhos editados pela editora Glénat, entre 2013 e 2015 e reeditado, em modelo de ‘obra integral’ pela Sculpteurs de bulles, em 2015. A obra Giant (tomo 2) recebe o Prémio de BD RTL em Junho de 2017 e o Prémio Albéric-Bourgeoisau do Festival Québec-BD em 2019.
Mikaël é autor de um conjunto de histórias, de um grafismos idêntico ao recentemente publicado em Portugal, pela editora Ala dos Livros, de cariz realista e historiográfico, abordando as vivências de uma Nova Iorque dos anos trinta, do século passado, de que é exemplo o díptico, Bootblack – editado pela editora Dargaud, em 2019 o primeiro tomo e no ano seguinte o segundo tomo –, centrando a sua narração na vida dos engraxadores da grande cidade, e mais particularmente na de Al, oriundo de uma família de imigrantes alemães. A trama inicia-se, na primavera de 1945, na frente de guerra, em território alemão
quando um soldado americano, Al, único sobrevivente da sua unidade, refugia-se nas suas memórias de vida em Nova Iorque, para fugir ao horror de destruição e morte que o rodeia e ameaça. Al, nascido nos Estados Unidos, não tinha dez anos quando, numa noite, sob a inclemência e a intolerância de uma
xenofobia, manifestada no ódio por estrangeiros, contribuirá pela atitude e comportamento discriminatório num acto de perda de seus pais e de sua casa, destruídos num terrível incêndio. O infortúnio leva Al a não ter outra alternativa que não ser viver nas ruas. Ele torna-se um Bootblack, um “engraxador”. Nas ruas nova-iorquinas encetará amizades, cumplicidades e paixões, a par de adversidades que o conduzirão ao mundo do crime e, consequentemente, à prisão. Após a sua libertação, ele descobre que as suas antigas amizades estão mortas ou desaparecidas, incluindo Maggie, que lhe tinha conquistado seu coração.
Durante o presente ano e para o próximo (2023) estão planeadas as publicações de uma nova história, novamente pela editora Dargaud, também ela tendo o mesmo pano de fundo de Nova Iorque, denominada Harlem. Os tempos refletem a Grande Depressão e os anos imediatamente seguintes e a criatividade imposta a uma mulher negra, Stéphanie St. Clair, conhecida como Queenie, para sobreviver.
Esta jovem, imigrante das Índias Ocidentais que se tinha libertado das correntes da servidão ancestral, para viver, também ela, o sonho americano, procurará a sua sorte nos subterfúgios subterrâneos do Harlem em tempo de proibição, transformando-se na rainha do distrito norte de Manhattan ao construir um império apetecível ao mundo mafioso (de que é exemplo Dutch Schultz, o conhecido mafioso holandês).
Stéphanie St. Clair organiza uma “lotaria popular” local que movimenta milhares de dólares e igual número de inimigos, pertencentes ao submundo ou às autoridades locais. Mikaël, também nesta obra, abordará o racismo, abrindo a possibilidade às reflexões sobre o lugar dos afroamericanos na construção desta América do segundo quartel do século XX e que está a caminho de se tornar o centro do mundo. Se nas “novelas gráficas” anteriores o desenhador aborda a dimensão social dos americanos desconhecidos que construíram Nova Iorque, ele, agora, introduz na leitura as vertentes da pobreza sistémica, da exclusão, da limitada educação da época e que, infelizmente, permanecem no coração desta América, relativamente a uma grande maioria da sua população.
Outras Publicações:
Ano – Edição Título da Obra Editora Reedições
2001 Junior L’Aventurier (Tomo 1) P’tit Louis
2002 Junior L’Aventurier (Tomo 2) P’tit Louis
2003 Junior L’Aventurier (Tomo 3) P’tit Louis
2005 Junior L’Aventurier (Tomo 4) P’tit Louis
2006 Junior L’Aventurier (Tomo 5) P’tit Louis
2006 Junior L’Aventurier (Tomo 6) P’tit Louis
2006 Brassens en BD Petit à Petit (Obra Colectiva)
2007 Les Nuages Clair de Lune
2008 La Neige Clair de Lune
2009 Les Requins et le Trésor Sous-Marin PLB
2009 Créatures d’Ouessant Spootnik (Obra Colectiva)
2010 Mês Contes Préférés Coup d’oeil (Ilustração)
2010 Félice et le Flamboyant Bleu PLB
2010 Le Roi Pillz-Zâ 1 Goélette (Ilustração)
2010 Le Roi Pillz-Zâ 2 Goélette (Ilustração)
2010 Le Roi Pillz-Zâ 3 Goélette (Ilustração)
2011 Le Roi Pillz-Zâ 4 Goélette (Ilustração)
2011 Le Roi Pillz-Zâ 5 Goélette (Ilustração)
2011 Rapa Nui (Tomo 1) Clair de Lune
2012 Rapa Nui (Tomo 2) Clair de Lune
2012 Circus Clair de Lune
2013 Félice et la Kaz Hurlante PLB
2013 Myrtille et le Fabuleux Circus Petit Pierre (reedição de Circus)
2013 Le Roi de L’Hiver Petit Pierre (reedição de La Neige)
2013 La Fabrique de Nuages Petit Pierre (reedição de Les Nuages)
2013 22 Contes Classiques Coup d’oeil (Ilustração)
2016 Félice et le Roi Crabe PLB
Ver a página do autor www.mikaelbd.com
FICHA TÉCNICA
Editor: Ala dos Livros
Idioma: Português
Dimensões: 242 x 308 x 12 mm
Encadernação: Capa dura
Páginas: 128 (Edição Integral)
Classificação: Banda Desenhada
Eugénio Montoito