Vestígios de um Mundo-Pós e sem Nome- Um conto de Ronaldo Cagiano

Seja o que foi que luta pela luz

 é mortalmente frágil

              Zbigniew Herbert

Naquela casa não havia espaços para cismas e outras deambulações nos atalhos do mistério, pelos escaninhos do assombro ou nas vielas do desconhecido. Nunca se dobraram às imposições de crendices ou a quaisquer outros acontecimentos atribuídos a ocultas forças. Superstições — como passar debaixo de escadas, sair de casa numa sexta-feira 13, quebrar espelho dando vez ao azar ou chinelo virado para cima como prenúncio de morte de mãe — nunca fizeram parte do folclore doméstico. O pai era um homem dado à vida prática e à racionalidade; destemido, não acreditava em alma do outro mundo, não tinha receio de cortar caminho à noite passando pelo cemitério, pois dizia que os vivos são mais perigosos que os mortos.

Tudo isso mudaria. Um dia, justamente uma data tão referenciada como dedicada ao culto das bruxas, 31 de outubro, ganharam um cachorro, presente da madrinha de crisma de Luciana, dona Maria Pequena. Na rua ela era conhecida por benzer quebrantos e maldições, curar espinhela caída e mau-olhado, além de engordar porcos num chiqueiro que mantinha contíguo ao galinheiro, na beira do córrego que passava nos fundos da casa, alimentando esses animais com lavagem – restos de comida que recolhia diariamente na casa dos vizinhos.

A mãe deu ao perro o nome de Halloween, ingressou na casa como um membro da família. Nunca haviam tido animais de criação ou estimação, até porque, morando num imóvel sem quintal, com um pequeno espaço exterior cimentado onde a mãe lavava e estendia as roupas num varal de nylon, não sobrava um canto sequer para uma gaiola. O cachorro passou a morar num pequeno recinto improvisado sob o tanque, onde também depositavam sua comida e água. O pequeno chow-chow foi-lhes entregue com poucos dias de vida, de modo que, com o passar do tempo, acostumou-se com o pouco espaço e não tinha noção do que era viver na rua, em plena liberdade, convivendo com outros cães rafeiros a explorar terrenos, lixeiras ou andar sem limites nem direção.

Tudo começou a mudar depois de alguns meses, quando o advento da famigerada pandemia de covid-19 trouxe uma onda de desorganização social e repercussões danosas no equilíbrio emocional das famílias, no desarranjo funcional das empresas, bancos, fábricas, comércios, escolas, clubes, estádios, igrejas, relacionamentos, vida social — o mundo todo compulsoriamente instado a viver num regime de restrições impostas pelas autoridades, para evitar o aumento de contaminações e mortes que essa nova peste fez reviver, nos tempos modernos, as mesmas tragédias já sofridas por outros povos desde a Antiguidade. Ainda noutro dia, o pai relembrava à filha e à mulher as baixas causadas pela “espanhola”, a febre que, no início do século passado, dizimou milhões de pessoas no mundo e matou o avô Acrísio e os tios Natalício e Hormenzinda.

Naquela casa, não fugiram ao esquete: foram obrigados a um confinamento (essa palavra que jamais havia habitado qualquer imaginário), sensação que jamais tinham experimentado em suas vidas, quando o distanciamento social virou regra e o isolamento um sintoma do que renomearam “novo normal”. A quarentena proibiu circulação nas ruas, transformou o mundo num imenso campo de concentração, um tempo de estranhezas e ilhas, de ausências e virtualismo, de vigor desértico, uso obrigatório de máscaras e tanto silêncio, além de trabalho à distância, de novas terminologias a lhes desafiar: home-office, live, lockdown, lawfare & o escambau de outras experiências incomuns. O tal teletrabalho obrigou aquele chefe de família a fazer as tarefas do banco pela internet, logo ele que detestava ficar em casa, costumeiro habitué das ruas, barbearias, botecos e bancas de jornais. A mãe, que raramente saía de casa, sempre atada às obrigações domésticas, à rotina imutável do cozinhar-lavar-passar, já se afetava com esse novo sistema de vida resultante das circunstâncias apartadoras. Era uma família pequena, apenas três pessoas, mais Halloween, que muita atenção também exigia.

Nesse tempo adulterado, com seus silêncios  a usurpar a vida, a cada manhã, Luciana colocava em ordem as obrigações do seu ofício, realizando as demandas por computador, com as planilhas que o escritório de contabilidade lhe enviava para que gerisse a partir de sua improvisada estação de trabalho, um curralzinho apertado num canto de seu quarto, este que dava frente para a rua, agora um deserto, sem automóveis nem gente, sem mesmo ouvir os assobios do pleonástico Geraldino enquanto este malhava ferro no galpão insalubre da serralheria em frente.

Halloween, Luciana e os pais já não aguentavam o reduzido espaço em que se moviam. Já não podiam sair senão uma vez por mês, para ir ao supermercado reabastecer a despensa, comprar a ração do bichinho ou os medicamentos para hipertensão e colesterol da mãe.

De um momento para outro, apareceram ocorrências bizarras, quando a tensão já se acumulava em seu ambiente e um confronto de humores estava alterando o funcionamento normal da casa, agora um útero onde se rivalizavam tantos labiritintos. O velho, que já era ranzinza por natureza no antigo mundo normal, hiperbolizou-se, não dormia com tranquilidade nessa nova experiência com o desconhecido, o tumulto do sono (hospedagem de fantasmas) entrecortado por pesadelos. Deixa de cisma, Onofre, não há nada de mais, você anda estressado porque não pode sair de casa, já não pode jogar no bicho, se aquieta, que outro bicho tá pegando lá fora — disse-lhe a mulher.

Ele ouvia gritos ressonantes na madrugada, não sabia se eram sonhos ou se emergiam do fundo da noite, pois uma voz que reverberava entre as árvores da rua (não conseguia distinguir o quê, muito menos quem era) chafurdava-lhe sem cessar como um enxame, como cupins de aço entre seus neurônios, ecos baralhando e estridulando em sua cabeça como uma sibila no cio, um vórtice gelando a coluna, um vade-mécum de insanidades, numa confusão babélica e atormentadora. Uma sinistra mensagem ricocheteava como um bate-estacas: “Cuidado com o que fazes”.

Há dias, ninguém descia as escadas para ir à caixa de correio recolher as correspondências e avisos de pagamento do período. Halloween já estava acostumado a receber o carteiro, quando esse passava diariamente entregando as encomendas postais nos domicílios, atraído pelo faro diligente e rastreador. Mas, há tempos, Zé Zuza já não tocava a campainha, passando a deixar os envelopes no escaninho de metal encravado no muro. Dona Germana foi à porta recolher o que havia na caixa abarrotada e espantou-se com o que viu: cada aviso de cobrança, cada boleto bancário, cada conta de energia ou água, tudo trazia um carimbo transversal com a efígie de uma caveira e a inscrição “Cuidado com o que fazes”. Era a mesma senha que invadia o sono atropelado de Onofre e que a mulher insistia em desqualificar.

Naquela noite chovia sem trégua. As águas do Meia-Pataca subiam estrepitosamente, já invadindo alguns quintais. Na vizinhança, a casa de dona Maria Pequena era a que mais sofria com as enxúndias do rio, e agora ela já pressentia o vomitar das nuvens e a enchente inevitável: tratou de esvaziar seu gatil-canil, retirou as gaiolas que pendiam sob a mangueira, levou os três felinos, os canários e pintassilgos para dentro e a porca Madellon e o cão Evilázio, que não paravam de grunhir-latir, numa antecipação de algum presságio, notória a ausência de seu Gusmão, o tratador que vinha quinzenalmente fazer o asseio nos animais.

Enquanto isso, em casa, inertes, sem forças, acuados pela prostração de tantos dias de autoexílio provocado pela pandemia, tentavam (que Morfeu os teria acorrentado?) decodificar os inquietantes sinais: quem os teria cravado, tanto nos pesadelos diabólicos do pai, quanto nos envelopes deixados pelo correio? Não fosse apenas isso, ao abrir os olhos fatigados de tanta interdição na manhã que mal nascera e já sucumbia sob o temporal naquela insana sexta-feira, 13 de agosto,  a filha, ao conectar seu computador, abismou-se com a tela que refletia, em muitos tons e variações de cor e letra, a mensagem que já havia pululado em outras instâncias reais e oníricas da residência: “Cuidado com o que fazes”. Não se deu por vencida, enxugou os olhos, pensava estar ainda semiacordada, depois da noite mal dormida que neblinava seus olhos. Fez suas abluções e higiene e voltou ao quarto, mas a maldita sentença havia desaparecido. Porém, ao entrar com seu código de login, a primeira mensagem do correio eletrônico foi-lhe como um soco indefensável: recebia de si mesma uma postagem com os mesmos satânicos dizeres: “Cuidado com o que fazes”.

Passageira de uma opressão intolerável, imaginava ser vítima de um inescrupuloso hacker, que invadia seu mundo virtual e sua realidade distópica para roubar-lhe dados (e a consciência) e injetar vírus, como acontecera na virada do milênio, quando foram deletados todos os seus arquivos, violaram o acesso às contas bancárias e cartões de crédito, o que causou-lhe imensos transtornos e prejuízos, consumindo tempo e dinheiro para serem reparados.

O dia passou sem novidades, Halloween amuado, como nunca se viu antes. Não quis comer o prato de lentilhas que dona Germana colocou, a água sem tocar, o seu olhar aniquilado por algo que parecia admoestá-lo de longe, imóvel e ensimesmado. Não se sabe como, mas Mussolini, um dos gatos da vizinha dos porcos, com suas garras afiadas, tinha saltado o muro e fazia companhia ao cão em estado de choque. Rondava por ali, andando em círculos, como numa prevenção e agonia inexplicáveis. O sol morria por trás do morro da fábrica de tecidos, a lua vinha débil, com sua claridade enferma, corroída pelas nuvens carregadas, estas que, vez por outra, iam e vinham traçando inusitadas silhuetas num céu já tão caluniado pelas substâncias do horror.

Veio a madrugada com seus vestígios e mistérios assombrar novamente a casa. Luciana levantou-se, foi à cozinha matar a sede e depois fazer o xixi que a obrigava todos os dias a acordar no meio do sono, por mais pesado que fosse, escrava que se tornara de diuréticos assim que se descobrira também hipertensa. Ao abrir a porta do banheiro, assustou-se com o que viu e leu. O vidro do armário sobre a pia estava trincado em forma de X e trazia insculpido, como se fosse uma marca d’água irremovível, a mesma advertência que já povoava não só as partes da casa, mas as mentes roubadas por um ser intangível, como uma praga: “Cuidado com o que fazes”. Que macabro é isso!!, ela pensou nervosamente. Que diabos quer Deus me mostrar? — arguiu-se, tumultuada. Lembrou-se de outros tempos, não muito distantes, quando o pai via-ouvia-sentia certos ricochetes e acicates no corpo e na alma, no refluxo de suas terríveis memórias dos tempos da ditadura, quando fora submetido a torturas e sevícias por Mão Branca, um agente da repressão que visitava semanalmente o DOI-CODI e agia sob as ordens do Cel. Brilhante Ustra e do agente conhecido como “Alemão” (ou Lange) naqueles porões assassinos — situação emocionalmente terrível que parecia ter sido controlada desde que o pai frequentara o consultório do Dr. Dalmo, em anos de infrutífera psicanálise.

Pensou estar sendo acometida pelo estresse dos dias acumulados em casa, a pressão de trabalhar sem o contato com os colegas, a confusão dos noticiários que a cada dia irrompiam com cifras horrendas sobre o desastre sanitário oriundo da pandemia em todo o país e no resto do mundo, agravado por culpa e obra de um genocida e sua familícia enquistada na pocilga palaciana. Não, não podia ser verdade que, além dos dias difíceis que estavam vivendo, ainda teria que conviver com outra ameaça, sem saber sua origem, sua autoria, sua veracidade. Seria delírio ou realidade? Terror criado pela avassaladora pandemia ou havia um perigo virtual a conjugar-se com as forças da natureza na concretização de uma última vingança do planeta aviltado, em sua fúria contra o tempo, as pessoas, o mundo cão?

Foram vários dias assim, numa sequência de atrocidades psicológicas provocadas por essas mensagens indecifráveis, sem que a família pudesse descobrir de onde provinham e o que queriam dizer, como se partilhassem produtos num armazém de sortilégios ou vivessem na iminência de uma emboscada de sombrias criaturas. Um outro vírus instalara-se no seio daquele domicílio e estava minando suas resistências e a imunidade emocional do lar, a ponto de não saberem mais distinguir o que era fato e o que era invenção de um inconsciente já perturbado por tanto desconforto, gerando monstros indestrutíveis e esfinges do incognoscível.

Na manhã daquele terceiro mês sem ter saído um dia de casa, Luciana não acreditou no que viu. Pensou estar num estado demencial, numa vaga de confusão lisérgica que seu metabolismo estaria deflagrando. Não, não era o que via, não era o que desejava ver nem sentir, narcotizada pela imagem brutal: o seu dócil Halloween de estimação empalado como Cristo numa cruz feita de garfos e facas retorcidos na estante, fincado num grosso volume de O intruso, de Stephen King.

                                                  (***)

Quando o gerente da imobiliária contou o que havia se passado com aquela insólita família num remoto ano de 2020 na casa à venda há tantas décadas, o cliente desistiu de fechar o negócio.

estamos vivendo a queda apocalíptica do nosso mundo e buscando o nosso caminho nas trevas

Otto Maria Carpeaux

Ronaldo Cagiano Barbosa (Cataguases, 15 de abril de 1961) é um advogado, escritor, ensaísta e crítico brasileiro.

Viveu em Brasília de 1979 até 2007, e em São Paulo de 2007 a 2017; mora atualmente em Lisboa. Trabalhou na Caixa Económica Federal de 1982 a 2016. Publicou em diversos jornais e revistas, entre os quais Jornal do Brasil, Hoje em Dia, Jornal de Brasília, Correio Braziliense, Estado de Minas, O Estado de São Paulo, Guia de Livros da Folha, Jornal Opção (Goiânia), Correio das Artes (João Pessoa), revista Cult, Jornal de Letras, de Lisboa, entre outros. Obteve o 1° lugar no concurso de contos Ignácio de Loyola Brandão, de Araraquara (SP), em 1996; 1° lugar no concurso Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com o livro de contos Dezembro indigesto. Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, Brasília, 2001), Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, Brasília, 2001) e Todas as Gerações – O Conto Brasiliense Contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006).

Ganhou o terceiro lugar na 58ª edição do Prêmio Jabuti de literatura com o livro de contos “Eles não moram mais aqui” (Editora Patuá 2015).

Livros publicados: Palavra Engajada (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1989) Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1990) Exílio (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1990) Palavracesa (poesia, Ed. Cataguases, Brasília, 1994) O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (coletânea de contos e crônicas, Ed. Thesausus, Brasília1997) Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Ed. Thesaurus, Brasília, 1997) Canção dentro da noite (poesia, Ed. Thesaurus, Brasília, 1999) Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Ed. Thesaurus, Brasília, 2000). Dezembro indigesto (contos, Brasília, 2001) Concerto para arranha-céus (contos, LGE, Brasília, 2004) Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006) O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias, SP, 2011) – Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012 Moenda de silêncios (novela em parceria com Whisner Fraga, Dobra Ideias, SP, 2012) Eles não moram mais aqui (contos, Editora Patuá 2015) Observatório do caos (poesia, Editora Patuá, SP, 2016) Diolindas, em parceria com Eltânia André (novela, Ed. Penalux, SP, 2017) Eles não moram mais aqui (contos, Editora Gato Bravo, Lisboa, Portugal, 2018) Os rios de mim (poesia, Editora Urutau, Pontevedra, Espanha, 2018) O mundo sem explicação (poesia, Editora Coisas de Ler, Lisboa, Portugal, 2019) Cartografia do abismo (poesia, Editora Laranja Original, São Paulo, 2020)

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