“Sintra é um espaço em que predomina o excesso: os palácios, os amores, as telas, os caminhos, os castelos, as nuvens, filtrando a luz que lhe é peculiar.”
Sintra: ao ler, na floresta, uma imagem puxa outra…
Levei comigo, para ler sentada no chão, encostada ao tronco de uma árvore frondosa, antiga, um poema de João Paulo Esteves da Silva, o que tem palavras que nascem de uma Luz primordial, a do Verbo primeiro que Deus chamou a si na criação do mundo e a que o poeta deu como título Telepatia. O seu poema provocou logo em mim uma resposta:
João Paulo Esteves da Silva
um poeta que compõe
um poeta que contempla
as vastas águas do céu
e as lamas negras da terra
onde um adão se desfaz
enquanto um outro é refeito
E agora o seu poema:
E se tudo fosse, mesmo, água,
como queria Tales, e como
tantas línguas parecem querer dizer
em seus pronomes aquáticos, os quais
evocam, quase sempre, a relação
com aquele modo de ser primordial?
Se fosse assim, o meu e o teu rio
que levam cursos tão diferentes,
por serras e países afastados, seriam
no fundo, e sem se ver, um mesmo rio.
E os versos que aqui ponho a flutuar
poderiam chegar à tua margem,
claro que já apagados pelas águas, mas
com uma música corrente que ainda ouvisses.
Não há poesia inocente, não há imagem, ideia, movimento, que no caso deste poeta não transporte algo mais, de muito longínquo no pensamento, na cultura de que é herdeiro e nos aponta a herança. Aqui teremos de deixar Tales de Mileto, o pré-socrático e tentar beber no Génesis a lição mais escondida da criação do mundo e do primeiro homem:
“Ao princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra era vaga e vazia, as trevas cobriam o abismo, o espírito de Deus planava sobre as águas”.
Estas as primeiras referências: já existiam “as águas”, o Todo que cobria céu e terra criados por Deus, que tal como as águas era também ele antigo e primordial. O seu Espírito, no momento da criação, planava sobre esse Todo. Talvez daqui tenha retirado o filósofo a sua ideia de que tudo era água, ideia que João Paulo desenvolve no correr do poema. Mas na verdade há outra, subjacente, e é sobre essa que temos de meditar, e que surge no dia dois da criação, depois de já separadas luz e trevas, no primeiro:
“ Deus disse: que haja um firmamento no meio das águas e que separe as águas das águas e assim se fez. Deus fez o firmamento que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão sobre o firmamento, e Deus chamou céu ao firmamento”.
Foi o segundo dia.
As águas estão ainda presentes no início do dia 3, em que a diferenciação continua, com a descrição no fim da verdura que cobrirá a terra. Mas falemos das águas:
“Deus disse: Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o continente; e assim foi. Deus chamou ‘terra’ ao continente e à massa das águas ‘mares’, e Deus viu que isso era bom.
A criação foi um acto ordenador de um universo caótico na sua origem, e que culminará com a criação do homem, Adão, feito à imagem e semelhança de Deus, ao sexto dia. No sétimo dia Deus repousará. Mas uma centelha de si mesmo permanece em Adão, feito à sua imagem, e é por via do par Adão/Eva que a história do mundo seguirá outro curso.
Não há repouso no mundo.
E Deus, que entretanto já se dividiu de si mesmo e se chama Jeová, continuará o seu diálogo, a sua interferência num mundo que até hoje tem parecido escapar-lhe. Jeová assume a forma de uma divindade poderosa, arcaica, a quem é necessário prestar tributo, sacrificar vidas para o honrar.
A interrogação de João Paulo, no poema, é feita de uma líquida nostalgia de um outrora em que o absoluto do universo era reconhecido e ao qual o homem (o poeta) e o seu Verbo se podiam entregar, vogando, confiantes.
A música das esferas, que o todo da água primordial envolvia, sempre haveria de chegar ao seu destino.
O destino era o “outro”, o outro de si mesmo e do deus implacável a quem a interrogação, como se cada poeta fosse um Job expectante, se dirigia: “e se tudo fosse, mesmo, água”…
Não haveria sofrimento, não haveria divisão (a ruptura que os causava) e então sim, o verso poderia recuperar a inocência que a consciência de si, e a satisfação com a sua Obra, no velho Jeová, tinha transtornado para sempre.
O Verso único, o do Som puro, perdido.
O que nos diz o Zohar, a este respeito? Obra de um místico, de um estudioso da Idade Média peninsular, segundo alguns, ou muito anterior, datável do século II, segundo outros, entre eles Gershom Scholem. Encontramos nesta obra a criação do mundo feita com a proclamação dos Nomes, pelas letras do Alfabeto, do A primordial, o Verbo divino na sua primeira manifestação.
Não é por acaso que no poema de João Paulo é a música dos versos que chegará ao destino, ainda que meio apagada pelas águas…
E os versos que aqui ponho a flutuar
poderiam chegar à tua margem,
claro que já apagados pelas águas, mas
com uma música corrente que ainda ouvisses.
Posso talvez agora fazer referência a um dos livros que antecedeu, ou inspirou, o Zohar, O Bahir, O livro da Claridade, que tenho na edição bilingue, em tradução do hebraico e do aramaico para francês, feita por Joseph Gottfarstein. Não se conhece o autor nem a data certa da publicação, julga-se que será da primeira metade do século XII em França, e que seja o primeiro escrito pertencente à literatura da Cabala. Oriundo de fontes orientais pouco conhecidas, amplia no entanto os grandes temas da mística das letras, da migração das almas, sistema dos Sephirot, combinação dos Nomes divinos e procedimento das orações, meditações sobre a criação do mundo e do mistério da Mercabah ( o Carro celeste). É considerado por isso um complemento precioso para o estudo do Zohar. Gershom Scholem considera que o Bahir tem influência da doutrina gnóstica, devido aos fragmentos cheios de segredos, e à abordagem da questão do mal, que é considerado não como antagónico do bem, mal vs. bem, mas como sendo ambos, o mal e o bem, obra do Deus único. Tem páginas notáveis sobre a definição do masculino e do feminino (no que em meu entender se aproxima das doutrinas herméticas, alquímicas, e o princípio da Conjunção de opostos, estudado por Jung).
Segundo o Bahir o mundo foi criado pela união dos dois princípios e a redenção messiânica só por tal união será obtida. Do Bahir a Boehme, teósofo e alquimista do século XVII alemão, neste sentido, muito haveria a dizer: a utopia de toda a criação…
Falámos das águas, um dos quatro elementos. Devíamos agora falar da terra e do fogo e do ar, ou então escolher, para fusão de opostos, a luz e as trevas, o masculino, solar, e o feminino, lunar.
Ambos, no caminhar pelos segredos de Sintra, nos podem seduzir, ideia após ideia, imagem após imagem, como num sonho de que não podemos acordar. Ali estamos, já meio confundidos com as raízes da árvore escolhida, para ler, dormir e acordar.
Sintra é um espaço em que predomina o excesso: os palácios, os amores, as telas, os caminhos, os castelos, as nuvens, filtrando a luz que lhe é peculiar. E até ao longe a areia fina das praias lhe dá um requinte que a torna desejada. Mas há mais com que sonhar: o silêncio, só interrompido pelo piar das aves, e até mesmo o medo, o terror ancestral de animais ignorados que ao aproximar-se, ainda que sejam a possível licorna, não deixam de assustar. Há luz, naquela treva? Sim, tímida ou ofuscante, a luz da lua, por entre o arvoredo. E ao amanhecer, a luz do sol. O sol e a lua, a luz e as trevas, incessante bater do coração.
Bernard Gorceix, o erudito estudioso e tradutor de Hildegarda de Bingen, a monja do século XII que a todos, incluindo o Papa, espantou com a sua sabedoria e as suas visões de rara beleza, e que outro estudioso, Peter Dronke deu a conhecer, publicando os fólios com as iluminuras, comenta a propósito da Visão X, a última descrita, que revelação divina se manifesta como imagem luminosa do amor e da graça. A figura que está no centro da roda segura na mão uma tábua com a seguinte inscrição:
“Irei manifestar-me na beleza, como a da prata, pois a divindade que ignora o princípio possui uma grande claridade. Mas tudo o que tem um princípio conhece contradições angustiantes, e não pode alcançar os segredos de Deus em toda a plenitude” (Gorceix, p.lxv).
Tudo na revelação é bipolar, deixa entender Hildegarda. Infinito e finitude, como se sente aqui, no esplendôr de Sintra. Está na hora de acordar de tanto devaneio, ideia atrás de ideia, imagem atrás de imagem…
E podemos então voltar ao poema de João Paulo, junto com ela, a visionária:
“Desde o princípio dos tempos até à eternidade reencontrada, a história desenrola-se entre a alternidade criadora de épocas de trevas e de luz”.
Mas, mesmo que a torrente das águas luminosas vá apagando os verbos carregados de sentido, como desejaria João Paulo, e com ele Hoelderlin, que Heidegger cita em O QUE É PENSAR? (WAS IST DENKEN? ) ficaria sempe o rasto dos sinais, esborratados, talvez, mas ao sobreviver vivendo, mesmo assim.
Y.K.Centeno
(2020)