I. Introdução
A conquista do Castelo de Sintra no século XII e a lenda de Milides são dois elementos que convergem na história e na mitologia portuguesa, oferecendo uma forma fascinante de entender a relação entre factos históricos e narrativas lendárias.
O Castelo de Sintra, situado num cenário pitoresco no topo da Serra de Sintra, desempenhou um papel estratégico fundamental durante o período medieval, na história do Reino de Portugal. Por outro lado, a lenda de Milides acrescenta uma dimensão mítica à sua história, repleta de romance, bravura e aventura.
Explorar a relação entre esses dois aspectos revela não apenas a riqueza cultural e histórica de Portugal, mas também a forma como a mitologia pode se entrelaçar com os eventos reais, enriquecendo a compreensão e a interpretação do passado.
Neste ensaio, examinaremos de perto essa interação, destacando como a conquista do Castelo de Sintra e a lenda de Milides se entrelaçam para criar uma narrativa fascinante da história portuguesa.
No desenvolvimento do nosso trabalho trabalhámos as fontes lendárias disponíveis na colectânea realizada por Miguel Boim, no seu trabalho Sintra Lendária, e as fontes históricas a partir de pesquisas sobre a história de Sintra e com a devida contextualização da História de Portugal dirigida pelo ilustre Professor José Mattoso.
II. Versões da Lenda.
A lenda de Milides terá, muito provavelmente, a sua origem na tradição oral até à sua consolidação em colecções escritas posteriores, em especial, as que chegaram aos nossos dias oriundas do século XIX.
A lenda remete para a origem de uma Ermida em Colares (município de Sintra) dedicada ao culto de Nossa Senhora de Milides, em agradecimento à vitória sobre os mouros e à conquista do castelo de Sintra por 20 soldados templários, em 1147, na decorrência da conquista das cidades de Santarém e de Lisboa, nesse mesmo ano, aos mouros pelos cruzados cristãos.
No século XIX, o Visconde de Juromenha, na sua obra Cintra Pinturesca, de 1838, apresenta a seguinte belíssima versão da lenda:
“A pouca distância do Convento dos Capuchos da serra, fica a antiquíssima ermida da Senhora de Milides, cuja origem data do princípio da Monarquia. Nas ruínas de tão modesto edifício que se diz ter sido a primeira paróquia da Vila [de Colares],
ainda se divisam os fragmentos da sua respeitável antiguidade.
O nome de Milides lhe vem, segundo a tradição dos povos, do seguinte facto. Vinte portugueses meditavam uma empresa de guerra contra os Mouros, ou fosse a tomada desta Vila ou antes que qualquer facão militar atrevida; começavam contudo a vacilar à vista de um desproporcionado número de inimigos e o seu ânimo varonil começava a afrouxar à vista de perigo inevitável.
À moda dos tempos antigos alentavam-se com a oração neste retiro, eis senão quando ouvem uma voz que dizia – Ide que mil ides: despertados e electrizados por esta voz mágica, saem resolutos, e aos gritos repetidos de Milides dão sobre os Mouros, a apesar de tão desproporcionado número, os desbaratam e vêm dar graças de tão portentosa vitória à Senhora que de ora em diante apelidam de Milides.”1
Esta é talvez a versão mais prestigiada da lenda e que não deixou de influenciar as futuras tradições orais desta história. No entanto, as versões orais da história têm sobrevivido, normalmente, entre contadores de histórias e poetas locais, sendo possível encontrar uma dessas versões numa recolha realizada por curiosos sobre o tema em sítios na Internet. A versão que partilhamos está disponível em https://serradesintra.net/wp/lendas-de-sintra/
“Após a conquista de Santarém, o rei D. Afonso Henriques impôs um cerco a Lisboa, que se estendeu por três meses. Embora o Castelo de Sintra tenha-se entregue voluntariamente após a queda de Lisboa, reza a lenda que, nessa ocasião, receoso de um ataque de surpresa às suas forças, por parte dos mouros de Sintra, o soberano incumbiu D. Gil, um cavaleiro templário, que formasse um grupo com vinte homens da mais estrita confiança, para secretamente ali irem observar o movimento inimigo, prevenindo-se ao mesmo tempo de um deslocamento dos mouros de Lisboa, via Cascais, pelo rio Tejo até Sintra.
Os cruzados colocaram-se a caminho sigilosamente. Para evitar serem avistados, viajaram de noite, ocultando-se de dia, pelo caminho de Torres Vedras até Santa Cruz, pela costa até Colares, buscando ainda evitar Albernoz, um temido chefe mouro de Colares, que possuía fama de matador de cristãos.
Entre Colares e o Penedo, Nossa Senhora apareceu aos receosos cavaleiros e lhes disse: “Não tenhais medo porque ides vinte mas ides mil, mil ides porque ides vinte.”
Desse modo, cheios de coragem porque a Senhora estava com eles, ao final de cinco dias de percurso confrontaram o inimigo, derrotando-o e conquistando o Castelo dos Mouros. Em homenagem a este feito foi erguida a Capela de Nossa Senhora de Melides (“mil ides”). (…)”2
A lenda apesar da sua tradição oral foi-se consolidando, numa primeira fase, nos trabalhos de recolha realizados por historiadores locais, como o Visconde de Juromenha, e, numa segunda fase, com a transcrição dessa tradição oral em sítios na Internet.
Estamos, assim, perante um fenómeno de como a história surge na literatura tradicional, isto é, textos que resultam de uma criação colectiva (onde, muitas vezes, não é possível aferir um autor), transmitidos ao longo de gerações, onde é privilegiada a transmissão oral (a transmissão escrita resulta maioritariamente de colectâneas posteriores) e que vão sofrendo diferentes transformações e conhecendo variantes em função do contexto histórico-cultural do transmissor.
Apesar da sua génese na literatura tradicional, a lenda de Milides terá repercussões na denominada literatura erudita, de como é exemplo o capítulo que lhe é dedicado na obra Cintra Pinturesca, do Visconde de Juromenha, ou um poema épico do século XIX, de autor desconhecido, e do qual transcrevemos uma parte:
“ (…)– E disse a bela rainha –
Eu sou a Virgem Mãe de Deus;
Ide fortes portugueses
Por vós combatem os céus,
Do mouro, posto que forte
Decretada está a sorte,
Vós haveis de triunfar;
Entrai em tão belas lides
Ide embora, que mil ides
O castelo conquistar.
(…)”3
III. A conquista do castelo de Sintra no contexto da reconquista cristã do século XII.
A conquista do castelo de Sintra representa um marco significativo no contexto da reconquista cristã da Península Ibérica durante o século XII. Este episódio histórico reflecte não apenas a dinâmica militar da época, mas também aspectos culturais, sociais e políticos que moldaram a história da região. Para compreender completamente a importância da conquista do castelo de Sintra, é crucial examinar o contexto mais amplo da Reconquista Cristã.
A Reconquista Cristã foi um período prolongado de confrontos e de expansão territorial que ocorreu na Península Ibérica, envolvendo reinos cristãos e reinos muçulmanos. Resumidamente, durante séculos, a região foi dominada pelo Califado Muçulmano, que estabeleceu um domínio significativo sobre a área. No entanto, a partir do século VIII em diante, depois da vitória de Pelágio no ano de 722, os reinos cristãos do norte da Península Ibérica começaram a lançar contra-ofensivas para recuperar territórios perdidos na era visigótica e assim expandir a sua influência.
No século XII, este conflito alcançou um ponto crucial. Os reinos cristãos, especialmente o recém-formado Reino de Portugal, estavam em ascensão, enquanto os reinos muçulmanos enfrentavam divisões internas e declínios de poder. Neste contexto,
a conquista de castelos e fortalezas estratégicas, na linha do rio Tejo, era essencial para consolidar o controlo sobre determinadas regiões e garantir a segurança das fronteiras.
O castelo de Sintra foi definitivamente conquistado pelo Rei D. Afonso Henriques, em 1147, na decorrência das conquistas de Santarém e de Lisboa, tendo a guarnição moura do castelo se rendido e entregue voluntariamente o castelo 4
Desta forma, historicamente, não existiu qualquer acto bélico de conquista do castelo, sendo a lenda de Milides um acto romanceado da tomada do castelo.
No entanto, não se deve desvalorizar a tomada deste castelo pelo Reino de Portugal, pois o castelo de Sintra, localizado na posição estratégica das colinas da Serra de Sintra, representava um ponto de defesa crucial na região. Com o castelo de Sintra, o Reino de Portugal assegurava a vigilância e a segurança no acesso à recém-conquistada cidade de Lisboa e consolidava a conquista da margem norte do rio Tejo, terminado assim a fase mais importante da ofensiva portuguesa, neste período do reinado de D. Afonso Henriques 5
A sua conquista não só proporcionou uma vantagem militar para os cristãos, mas também simbolizou a expansão de seu domínio sobre territórios anteriormente controlados pelos muçulmanos. Além disso, o controlo do castelo de Sintra oferecia acesso a recursos naturais valiosos, como a agricultura saloia ou a indústria extractiva da pedra, e rotas comerciais importantes, através do acesso à foz do rio Tejo e à costa atlântica, contribuindo para a economia do novo reino.
É importante assinalar que a conquista do castelo de Sintra não foi apenas um evento isolado, mas parte de um processo contínuo de avanço e recuo das fronteiras ao longo da Reconquista Cristã. Conforme os reinos cristãos expandiam seu território, enfrentavam resistência e contra-ataques por parte dos muçulmanos, o que resultava em um ciclo interminável de conflito.
Além do aspecto militar, a conquista do castelo de Sintra também teve implicações culturais e sociais. A presença cristã na região trouxe consigo influências culturais e arquitectónicas que deixaram uma marca duradoura na paisagem e na identidade local. A construção de igrejas e outras estruturas religiosas, como a Ermida de Milides em Colares, reflectiu a importância da religião na sociedade medieval e contribuiu para a disseminação do cristianismo na região.
A conquista do castelo de Sintra desempenhou um papel significativo no contexto da Reconquista Cristã do século XII. Este evento não apenas fortaleceu a posição dos reinos cristãos na Península Ibérica, mas também teve repercussões culturais e sociais duradouras. Ao entender o significado da conquista de Sintra, podemos apreciar melhor a complexidade e a importância deste período da história medieval ibérica.
IV. A lenda no contexto da reconquista cristã do século XII.
A lenda de Milides é uma narrativa lendária sobre a história do castelo de Sintra, oferecendo uma perspectiva única sobre a sua importância no contexto da Reconquista Cristã do século XII. Embora seja uma narrativa mítica, a lenda de Milides ecoa os sentimentos e as aspirações da época, revelando a profunda conexão entre a história, a mitologia e a identidade cultural.
Embora a lenda de Milides possa ser considerada uma narrativa fictícia, a sua importância reside na forma como apresenta os ideais e os valores da Reconquista Cristã.
A lenda Milides personifica a coragem, a honra e a devoção à fé cristã, características consideradas essenciais para os guerreiros cristãos, e em especial para os Templários, que lutavam pela reconquista dos territórios perdidos para os muçulmanos. Esta lenda –história teria igualmente como finalidade o fortalecimento do espírito de resistência entre os cristãos, reforçando a sua determinação em enfrentar os desafios impostos pela guerra de reconquista.
Esta lenda que enaltece o heroísmo cristão dos guerreiros templários e a devoção à Virgem Maria, com a aparição de Nossa Senhora de Milides ou Mil Ides, enquadra-se na tradição de divulgação oral de narrativas heroicas nos meios nobiliárquicos do século XII, onde podemos destacar, entre outros, as canções de feitos heroicos ou o romance arturiano.6
No contexto mais amplo da Reconquista Cristã do século XII, o castelo de Sintra desempenhava um papel estratégico crucial como um ponto de defesa avançado nas fronteiras do reino cristão. A sua posse garantia o controlo sobre uma região estratégica e o acesso a importantes rotas comerciais e recursos naturais. Portanto, a defesa e a manutenção do castelo eram de vital importância para os interesses cristãos em toda a região de Lisboa e Vale do Tejo.
Por fim, a lenda de Milides oferece uma visão fascinante e evocativa da história do castelo de Sintra no contexto da Reconquista Cristã do século XII. Embora seja uma narrativa lendária, as suas lições e seu simbolismo continuam a presentes na compreensão da história e da cultura da Península Ibérica medieval e, em especial, do Reino de Portugal. Ao explorar esta lenda, podemos apreciar a complexidade e a riqueza das tradições narrativas que moldaram a identidade do povo ibérico e, em especial do povo português, ao longo dos séculos.
V. Conclusão.
A conquista do Castelo de Sintra no século XII e a lenda de Milides revelam uma fascinante interacção entre história e lenda, proporcionando análises e considerações sobre a maneira como as narrativas lendárias podem explicar ou potenciar a curiosidade sobre eventos históricos.
Enquanto a conquista do castelo é um marco factual na história portuguesa, de carácter e de transição pacíficos, a lenda de Milides acrescenta uma camada de totalmente romanceada, transformando um episódio militar numa história de santidade, de heroísmo e também de legitimação do poder régio.
Ambas as narrativas, a histórica e a lendária, embora distintas na sua natureza, reflectem a riqueza da cultura e da tradição portuguesas, destacando como o mito e a realidade muitas vezes se entrelaçam para moldar a identidade de um novo reino.
Ao examinar estas histórias em conjunto, somos, muitas vezes, lembrados da importância de compreender tanto os eventos históricos, quanto as lendas que os acompanham, para obtermos uma compreensão mais completa e rica do passado e da
cultura do povo português.
VI. Bibliografia.
BOIM, Miguel – SINTRA LENDÁRIA. 6ª ed. Sintra: Zéfiro, 2022. ISBN 978-989-677-122-5
CARDIM RIBEIRO, José. Coord. – SINTRA PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE.Sintra: Gráfica Europan. 1998
MATTOSO, José – D. AFONSO HENRIQUES. Rio de Mouro: Temas & Debates,mISBN 978-972-759-911-0
MATTOSO, José – HISTÓRIA DE PORTUGAL. VOL. II. Rio de Mouro: Círculo de Leitores. 1993. ISBN 972-42-0636-X
SERRÃO, Joel; MARQUES, Oliveira A.H. – NOVA HISTÓRIA DE PORTUGAL. VOL. III. Lisboa: Editorial Presença. 1996. ISBN 972-23-2039-4
Na Internet:
https://serradesintra.net/wp/lendas-de-sintra
1 BOIM, Miguel. Sintra Lendária. Zéfiro. Sintra. 6ª edição. p. 51.
2 https://serradesintra.net/wp/lendas-de-sintra/
3 O poema completo é consultável em BOIM, Miguel. Sintra Lendária. Zéfiro. Sintra. 6ª edição. pp. 52 a 55.
4 CARDIM RIBEIRO, José. Coord. – SINTRA PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE. Sintra: Gráfica Europan. Pág. 201.
5 Sobre a consolidação da ofensiva portuguesa na linha do rio Tejo, MATTOSO, José – HISTÓRIA DE PORTUGAL. VOL. II. Rio de Mouro: Circulo de Leitores. 1993. Pags. 75 e 76. ISBN 972-42-0636-X
6 Sobre a cultura nesta época: SERRÃO, Joel; MARQUES, Oliveira A.H. – NOVA HISTÓRIA DE PORTUGAL.
VOL. III. Lisboa: Editorial Presença. 1996. Pág. 660 e seg.