O escritor e ensaísta Miguel Real enviou-nos este pequeno conto como “prenda de Natal” que com todo o prazer e alegria publicamos para os nossos associados e leitores
CAMILO: UMA BALA NA CABEÇA
– Aninhas, podes levar à porta o senhor doutor?
Camilo recostou-se na cadeira de balanço, passou a mão esquerda pela cara, estava decidido. Sentiu o braço do vizinho envolver-lhe o pescoço, tinha assistido à consulta e percebera pelas hesitações do médico que nada havia a fazer para debelar a crescente cegueira de Camilo, o doutor recebera em Aveiro um apelo lancinante de Camilo.
Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país durante quarenta anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego.
O doutor Edmundo de Magalhães Machado mandou o criado preparar a sege para domingo, iria visitar Camilo nesse dia, no regresso dormiria no Porto. Se fosse assim tão grave poderia experimentar as “pontas de fogo”, uma carga elétrica que tão grande sucesso resultara na Alemanha, segundo as revistas francesas de especialidade, ainda que experimentadas em Lisboa tenham resultado em fracassos sucessivos. O doutor Machado inspecionara-lhe os olhos à luz de uma vela do tamanho de um dedo, e repetira a inspeção. Se no princípio da consulta o médico disse que gostava de receber Camilo no seu consultório em Aveiro, no final, soerguendo-lhe o braço direito pelo pulso, dissera-lhe que, primeiro, seria melhor subir ao Gerês para enrijecer a massa muscular, o Camilo está demasiado fraco. Foi aqui que o vizinho percebeu que não havia solução, e Camilo também. Foi então que Camilo disse:
– Aninhas, podes levar à porta o senhor doutor? Depois fazemos contas.
Estava decidido, suicidar-se-ia nesse dia, já não valia a pena enviar a carta que a Aninhas o ajudara a escrever ao Morais Sarmento, o homem da citânia de Briteiros.
Dou-lhe a triste nova de que estou quase cego. É a anemia dos olhos congénere da anemia geral (…) Eu bem queria poupar-me ao suicídio, mas desde os 18 anos que pressinto a necessidade desta evasiva, sem me lembrar que a cegueira seria o impulso justificadíssimo da catástrofe.
Já não lerei o seu livro das 300 pp., meu caro amigo.
Camilo fez tenção de se levantar, o vizinho pegou-lhe pelo braço, Camilo apontou para a mancha ainda clara da porta, um vulto descompassado sentava-se na escadaria de granito, era o Jorge, de tronco e braços desengonçados, um olho para cada lado, o doidinho, Camilo passou-lhe ao lado e fez-lhe uma festa no cabelo, porventura seria a última, dirigiram-se para a mancha do souto a caminho da Igreja de São Miguel, Camilo gostava de se encostar aos castanheiros ao fim da tarde, sentir os ouriços a crescerem, e, ao contrário de outros dias, nada dizia, o vizinho pressentia-lhe uma tristeza profunda, fora ao Porto, fora a Lisboa, um amigo falara-lhe neste médico de Aveiro que fazia milagres, e afinal mandara-o para o Gerês para enrijecer as carnes.
Para o animar, o vizinho resolvera inventar uma história, esquecendo-se que ali o inventor de histórias era o Camilo.
– Quando eu era pequenino havia em Seide uma senhora cega, totalmente cega, nunca saía de casa porque assim nascera. Mas era rainha na sua casa, de madrugada fazia o almoço para os quatro filhos e o marido comerem quando regressavam dos trabalhos agrícolas…
Camilo percebeu a intenção do vizinho.
– Mas eu se quero comer tenho de publicar e para publicar tenho de escrever, e cego não poderei escrever.
– Ora, ora, disse o vizinho, mas pode ditar.
– Dito a quem?
– À senhora dona Ana.
-A senhora tem os seus livros para escrever
– Ao Nuno
– O Nuno é um troca tintas, um pequeno aldrabão.
– Talvez o amigo pudesse pedir a um estudante do Porto que viesse cá a casa ao fim de semana. O Camilo rabiscava umas coisas durante a semana e ao fim de semana os dois…
– Um anúncio no jornal… Quem quer ajudar o ceguinho!!! Que ridículo.
Não, há muito que estava decidido.
Aos 18 anos, já era casado e já tinha um filho, vivia no Porto sob a alegação de querer estudar, vivia numa trapeira do Hotel Francês e não comia para poder comprar roupa. Frequentava o salão literário da senhora Maria Felicidade Brown, burguesa rica de Vila Nova de Gaia, fazia-me acompanhar dos literatos do Café Guichard. Apaixonei-me pela senhora, que tinha cinquenta e tal anos e quatro filhos mais velhos do que eu. A Brown era poetisa e publicava poemas nos jornais do Porto, eu comentei um poema seu com um poema meu, foi um escândalo, eu via-a olhar para mim de sorriso na boca, presumi que ela também se apaixonara, e não tirei os olhos do seu sorriso como se ali estivesse a porta do paraíso. Entrei no salão com a minha sobrecasaca azul-celeste com botões amarelos, o chapéu alto branco. Tudo o que ela tinha eu não tinha, a riqueza, os lustres de cinquenta velas, as serpentinas iluminantes saídas das paredes, os aparadores de nogueira, s soalho de carvalho, as mesinhas de cerejeira, o conjunto de violinos num estrado envernizado embelezando os nossos ouvidos, e eu não conseguia tirar o meu olhar do seu e ela do meu, ela era a mãe que eu nunca tive, ela tinha casa que eu nunca teria, mas queria ter, eu, com a minha sobrecasaca azul-celeste de botões amarelos, que a todos escandalizava, senti-me puxado por um ombro, empurrado para a porta, era o filho mais velho, autoritário, chamou-me cloaca, cheiras mal da boca, disse ele, eu expliquei-me, funo do tabaco mais barato, ele levantou a mão para me dar um sopapo, antes que o fizesse dei-lhe eu um, todos caíram em cima de mim, puxaram me o casaco, vi-me ao portão com umam manga rasgada, chapéu de boca alta atitado para o chão e desafiado para um duelo, de que sai com uma perna ferida. Foi então que o suicídio me apareceu com uma alternativa, foi a primeira vez. Quando fugia das autoridades por ter raptado a Aninhas, que já se encontrava presa, passei a cavalo sobre a ponte de Amarante e pensei, olhando para as águas revoltas do Tâmega, se me atirasse daqui abaixo, acabava-se tudo.
Entrou o Terra Nova da família em casa, trouxe-o o Nuno, eu não falava com o meu filho, ele desviara 10 contos de réis, o Terra Nova abocalhou-me, queria festas, o maganão, branco e castanho, o vizinho despedia-se, chamando-o, tenho ali os restos de uma chispalhada, que está a começara a azedar, para ele ainda está boa.
Encostado à parede do corredor, dirigi-me para o quatro, na mesinha de cabeceira estava o revólver, o Bull-Dog de coronha de madeira com tambor de seis balas. Retirei-a, pelo peso percebi que as balas estavam carregadas. Ótimo.
Sorri ao lembrar-me da história. Eu andava sempre com a arma no bolso da casaca. Em casa da Branca de Conta Colaço, na última vez que fui a Lisboa, irritei-me com a Aninhas (ela fora visitar uma familiar sua que recusara recebê-la), puxei do revólver e ameacei matar-me. O dr. Sousa Martins afiançava que eu já ameaçara matar-me 100 vezes, só à frente dele, na farmácia da família na rua de São Paulo, tentara por 5 vezes, mas quando encostava o cano à testa hesitava, o instinto de sobrevivência falava mais alto. Desde aquele dia em casa da Branca de Conta Colaço, a Aninhas descarregara as balas do revólver e escondera-as. Fomos para casa do Barjona de Freitas, em Benfica, e eu fiz de propósito, fingi que me zanguei por causa da cegueira e dos filhos apatetados, saquei do revólver e disparei contra a parede. Nada.
No dia seguinte, pedi ao meu sobrinho, António de Azevedo Castelo Branco, que carregasse o revólver na armaria do Rossio. Recusou. Não queria ter problemas de consciência, foi o que me disse.
– O tio por vezes não pensa bem.
Eu nunca penso bem, António, não sou um burguês como tu, advogado e administrador executivo.
Quando cheguei a casa, pedi secretamente ao Raimundo, o faz tudo cá de casa., que fosse ao Porto carregar o Bull-Dog.
Arrastei-me pelo corredor, regressei à mesa de trabalho. Papéis mais papéis, livros mais livros Nada arrumei. Não quero pensar, está decidido. Levei a mão ao bolso. Apalpei a Bull-Dog…
Miguel Real.


