Da Oportunidade das Memórias à Sensibilidade da Preservação do Nosso Património
(Leal da Câmara e a participação portuguesa no primeiro conflito mundial)
Eugénio Montoito
Baleia, 26 de Novembro de 2016
A razão de um Apontamento
No próximo dia 30 de Novembro, comemorar-se-á o 140º Aniversário do nascimento de Leal da Câmara (1876-1948). Paralelamente, comemora-se este ano o centenário da entrada e participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, após a apresentação da declaração de guerra alemã, de 9 de Março de 1916, em resultado da apreensão de todos os navios mercantes alemães fundeados nos Portos nacionais, efectuada pelas autoridades portuguesas a pedido do governo britânico.
Ora, compreendendo que a memória é uma recordação subjectiva e pessoal que focaliza e selecciona momentos e acontecimentos concretos e encontra-se inserida num contexto colectivo, na sua procura e necessidade de sentido, enquanto a História é uma narrativa colectiva que fala sobre as alterações que os homens e o seu mundo viveram e que são observáveis no passar do tempo como provas sobreviventes às gerações, recordar Leal da Câmara e lembrar a participação portuguesa no primeiro conflito mundial, representa a vontade de reduzir a fronteira entre o esquecimento e a lembrança e de proporcionar a educação das envolvências emocionais com o necessário saber dos homens.
Este somatório e interligação de apontamentos evocativos obedecem a quatro ênfases, indissociavelmente unidos e formados no espírito da sua razão e da sua oportunidade, como conteúdo formativo, enquanto lugar de memória, enquanto mecanismo para a constituição da identidade municipal e, por último, como apetrecho da nossa história nacional.
Enquanto lugar de memória, sabemos, através da experiência proporcionada pelo saber que muitos dos acontecimentos, das personagens e, até, dos lugares nascem e vivem num curto sentimento de lembrança espontânea, sendo preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, discursar elogios, imprimir textos ou pintar telas para que haja memória. Também, nesta perspectiva, sabemos que a memória é um exercício de referência permanente, resultante de um conjunto de identificações enciclopedicamente acumuladas, de situações, factos, lugares e símbolos, aos quais precisamos constantemente de recorrer, mas que pela sua gigantesca dimensão se transformam em repertório insondável e humanamente difícil de lembrar. Ora, nesta perspectiva de entendermos a memória e compreendermos a história é importante falar de Leal da Câmara e discutir a participação portuguesa no primeiro conflito mundial, mesmo que sucinta e apressadamente.
Tomás Júlio Leal da Câmara
Tomás Júlio Leal da Câmara nasce em Pangin (Nova Goa)[1], a 30 de Novembro de 1876, filho de um Oficial do Exército, Eduardo Inácio da Câmara e de Emília Augusta Leal.
Em 1895, com a morte do progenitor (à altura destacado em Timor), o jovem estudante abandona o curso de Agronomia e Veterinária, que entretanto iniciara, trocando-o pela profissão de jornalista, ocupação bem menos estável, mas muito mais compatível com o seu modo de estar e de ser.
O incisivo poder crítico da sua personalidade, por excelência manifesto no campo humorístico do desenho caricatural, leva-o então por mérito próprio, a atingir, desde logo, uma verdadeira notabilidade no meio intelectual português. Contudo, tal reconhecimento artístico não foi suficiente para impedir um mandato de captura policial e um inerente julgamento que o conduziria ao degredo, motivados pelos seus sarcásticos e críticos desenhos, onde ridicularizava as mais destacadas e omnipresentes figuras públicas e políticas do Portugal de então. Deste modo, em 1898, o republicano convicto, o caricaturista subtil, o artista rebelde, atravessa a fronteira, iniciando uma longa ausência do país, primeiro por três anos na capital espanhola, e depois, um pouco mais a norte, na “morada cultural” dos poetas: Paris. Aqui chegará, a par do Século, tentando conquistar o seu espaço na metrópole das artes e letras enquanto decorria o desencanto das tristezas esquecidas.
A implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, fá-lo-á regressar a Portugal. Todavia, a manifesta indiferença cultural das elites portuguesas, aliada à ignorância geral das populações, a par da fraca diferença entre regime deposto e nova situação, desapontam-no cruelmente, levando-o, desta feita, a exilar-se por decisão própria (1913) e a procurar de novo a sociedade parisiense, entre a qual permanecerá até finais de 1915.
Leal da Câmara, acompanhou com o seu majestoso lápis o desenrolar inicial deste grande conflito mundial, em terras parisienses, publicando no “Rire”, no “Rire Belge”, no “Le Caricature”, no “L’Assiette au Beurre”, no “L’Indiscret”, no “Journal Pour Tous”, no “Sans-Gêne”, no “Le Diadle”, no “Frou-Frou”, no “Le Cris de Paris”, no “Le Bom-Vivant”, no “La Vie Pour Rire”, no “Le Sourire”, no “Le Canard Sauvage”, no “Le Carillon”, no “Le Humoriste”, no “Le Barbare”, e tantos outros periódicos, desenhos mordazes e desconcertantes sobre a guerra, as suas causas e os seus intervenientes.
“O Javali Alemão” [s/d]
“O Grande Culpado”
Kaiser Guilherme (o Pequeno) – Átila II – Imperador dos Vândalos
Eclodida a Primeira Grande Guerra, Leal da Câmara, com o seu espírito dinâmico e sempre pronto a manifestar de forma aberta as suas convicções, “alista-se” voluntariamente no combate ao “javalítico” e “Grande Culpado bárbaro” Huno, cavando as trincheiras da sua frente de batalha com lápis, papel e a sua arte caricatural. Aliás, os tempos impunham o abandono da caricatura de humor, de galantaria e da troça política, por substituição exclusiva do risco do ódio e do furor patriótico, tão necessário para o combate contra o inimigo. Contudo, a instabilidade que se vivia não poupava os projectos, por muito ardentes que fossem nas suas intenções. Leal da Câmara começa a ressentir-se das atribulações, das fragilidades e das novas velocidades impostas ao quotidiano. A sua saúde começa a levantar-lhe alguns problemas e a exigir mudanças de ritmos, pelo que o regresso a Portugal impôs-se como uma necessidade, em 1915.
Não sabemos, ao certo, quais os motivos que levaram o mestre pintor a fixar-se no Porto. No entanto, podemos sempre conjecturar que as impressões sobre os destinos e os proveitos da guerra, observados agora a uma distância confortavelmente calma, a par do facto de ter conseguido encontrar um ambiente tertuliano, de homens inteligentes dados de igual modo à boémia, às letras e às artes e de lhe aceitarem a sua cumplicidade na produção daquilo que mais gostava de fazer – humor e caricatura –, foram razões suficientemente fortes para o prenderem a esta nova morada.
Com o jornalista Guedes de Oliveira e o Dr. Monterroso, lança a público O Miau!. Colabora em La Esfera, na España, no El Zorro, n’ Os Grotescos, n’ O Riso da Vitória e na Ilustração Portuguesa. Viaja até Madrid para recolher depoimentos e entrevistas, para o jornal A Noite, do Rio de Janeiro, sobre a posição da Espanha face à guerra europeia. Junta-se a um grupo de artistas, tais como Diogo de Macedo, António de Azevedo, Henrique Moreira, Joaquim Lopes, Abel Salazar, Armando Bastos, Almeida Coquet, António Lima, Henrique Medina, Mário Pacheco, Carlos Ribeiro, etc., etc, e fundam Os fantasistas que expõem e exibem as irreverências do tempo do simbolismo. Em 1916, por sua iniciativa, funda a Societé Amicale Franco-Portugaise, com o intuito de promover as relações entre os dois países. Um ano depois sai a público o seu livro Miren Ustedes, onde refere, a páginas tantas, que é indispensável reconhecer esse outro mundo diferente que existe em cada indivíduo e que é o mundo da alma. Reconhecer a psicologia, descortinar as suas características, os seus desequilíbrios, o grau de sensibilidade e qual a sua força de vontade[2].
Com o fim do conflito mundial e em colaboração com o escultor Teixeira Lopes promove uma campanha a favor da construção, em terras de França, de uma aldeia portuguesa que perpetuasse a presença, a participação e o sofrimento do seu povo naquelas terras martirizadas. Iniciativa esta que, simplesmente, se ficaria apenas pela construção de um cemitério.
A Participação Portuguesa na 1ª Grande Guerra Mundial
Nesse propósito somos de relembrar o dramático e dantesco acontecimento que terá como casualidade na frágil e definhante República Portuguesa, não só uma perda de milhares de vidas e de recursos materiais, aplicados nas três frentes do conflito, a atlântica, a europeia e a africana[3], como, também, o elemento político de contestação e de divisão social, incluindo, até, no seio das forças militares, determinante do seu fim em 28 de Maio de 1926.
Partida de tropas portuguesas para França
A partir desse momento, a Republica ver-se-á confrontada com crescentes dificuldades respondendo exponencialmente de forma repressiva, por vezes politica e policialmente violentas, já que a maioria das resoluções e das medidas tomadas a nível nacional ou municipal de combate aos problemas surgidos se mostravam ineficazes ou insuficientes.
Apesar das trincheiras, as deflagrações dos obuses e a devastação da guerra estar longe do território luso, a guerra conseguiu exacerbar as acentuadas vulnerabilidades sociais, as crescentes divergências e clivagens económicas e políticas, provocadas pela instabilidade e insatisfação social, agravando-se a gestão e a defesa de um regime que, a cada dia que passava, via somar negativamente o saldo humano e material da intervenção portuguesa e, na razão desse alinhamento, preencher ao rol das críticas às instituições republicanas as frustrações dos que tinham defendido a participação na guerra e a criação da governativa “união sagrada”.
«Poderiam ter sido irmãos, mas foram fratricidas….»[Desenho de Leal da Câmara, s/d]
Aos problemas decorrentes da estrutura social e da natureza do tecido produtivo nacional e do elevado grau de dependência externa, acresciam os efeitos da pressão inflacionista, da escassez de produtos (transpondo em muitas situações os limites da resistência, entre a fome e a carestia), do esforço financeiro associado às despesas de guerra, dos montantes atingidos pelo endividamento interno e externo, os quais, quer no seu todo quer no seu particular, arrastavam o País para um contexto de crise económica e financeira, cujas consequências iriam perdurar para além do fim do conflito e determinar o fim político da primeira republica e a ascensão e perpetuação por largos anos de um regime ditatorial.
A Casa-Museu Leal da Câmara
O velho casal saloio situado na Rinchoa, não muito distante do terrado da feira das Mercês e junto à velha estrada do marquês e que, nesses tempos idos, terá servido de posto de muda de cavalos e descanso de cocheiros, passa para a posse de Leal da Câmara a partir de 1923. Aqui residirá o artista e sua mulher desde 1930 até ao momento das suas mortes, respectivamente em 1948 e 1965. Neste período, Leal da Câmara, afastado da movimentada atmosfera lisboeta, dedicar-se-á essencialmente à reprodução artística das vivências rurais observáveis na região. A Rinchoa impõe-lhe um novo e transfigurante período na vida artística, em que pretende salientar o pitoresco do mundo rural que o rodeia, registando, para isso, as mais vivas impressões do característico Saloio, surpreendendo o homem e o meio com um humorismo que ele, como caricaturista, definia como o reflexo de uma alma triste e melancólica que se rebela contra a estupidez da convencional alegria.
A construção inicial, constituída por dois pisos e com um corpo de duas águas a si adossado, encontra-se actualmente modificada, quer pelas sucessivas ampliações e remodelações ali levadas a efeito, ainda, pelo mestre pintor, quer pelas adaptações que sofreu após 1965, data em que é incorporada no património da Câmara Municipal de Sintra. Hoje, por opções museológicas, o edifício apresenta-se algo diferente, sobretudo ao nível da sua compartimentação interna e dos seus acessos. Todavia, deve-se ainda a Mestre Leal da Câmara a primeira tentativa de musealização da sua residência e ateliê. Com efeito, e já depois de ter efectuado algumas exposições sobre a temática dos “Saloios”, com trabalhos seus, Leal da Câmara inaugura, a 16 de Setembro de 1945, o seu espaço musealizado, abrindo-o inclusivamente ao público, visando, deste modo, não só o contacto e o intercâmbio de ideias com o mundo exterior, como também, dar continuidade e maior amplitude às frequentes visitas de amigos, admiradores e demais curiosos.
Em 1956, e mais tarde em 1965, são lavradas escrituras entre Dª Júlia de Azevedo e a Câmara Municipal de Sintra, com o objectivo de esta última aceitar uma doação, por parte da primeira, contraindo deste modo o encargo de fazer funcionar, na ala poente do edifício, um pequeno museu. O seu acervo incluía, para além de praticamente todo o recheio da casa, pinturas, gravuras, desenhos, aguarelas, guaches e a documentação do artista.
Quer em 1976, data do primeiro centenário do nascimento do mestre, quer em 1991, são realizadas intervenções museológicas e de restauro em todo o imóvel. Contudo, é ao nível de concepção museológica que a Casa-Museu Leal da Câmara sofrerá sempre as suas maiores transformações, aligeirando-se toda a sua atmosfera interna, procurando dar aos espaços e aos recantos um aspecto menos pesado e de mais fácil leitura para os visitantes da Casa-Museu, transformando, desse modo a Casa-Museu Leal da Câmara num espaço cultural “vivo” e mais aberto, sem, contudo, descaracterizar o que resta da traça inicial, ou seja, possibilitar a criação de um autêntico pólo cultural que aglutine, em si, o propósito do Mestre Leal da Câmara e de seu esposa Dona Júlia de Azevedo, os desejos da população envolvente, a par de um funcionamento museológico moderno e cientificamente actuante.
Por último, uma lembrança, uma opinião, um desejo, uma sugestão
Não poderia terminar esta pequena evocação sem deixar de apontar a passagem dos 60 anos, feitos em 17 de Março passado, da assinatura de doação, por parte de Dona Júlia de Azevedo, viúva de Mestre Leal da Câmara, ao Município de Sintra, através da procuração institucional da sua Câmara Municipal, das colecções de arte e dos edifícios que constituem o conjunto arquitectónico rinchoense. É, de facto, a partir desta data que Sintra passa a ter sob a sua tutela um imóvel, um espólio, uma memória, resguardados na figura jurídica de museu e na responsabilidade e obrigação ética e patrimonial de salvaguardar, conservar e divulgar a obra e o homem que viveu naquele lugar da Rinchoa.
Agora, resta-nos esperar que a 2 de Junho de 2017 a Casa-Museu Leal da Câmara possa comemorar o seu 60º Aniversário, na figura de espaço musealizado, nos preceitos definidos para tal como registo de casa-museu, reconhecido no seu propósito cultural e patrimonial de fruição e educação pública, com toda a sua representação cenográfica original no seu lugar, integridade física plena e sem remendos, sem perturbações ficcionadas de tipo de “casa de terror”, de inconvenientes e despropositadas curiosidades tacteantes ou de odorosas e descuidadas manifestações que o medo e o susto, por vezes, provocam nos intestinos dos mais sensíveis.
A Casa-Museu Leal da Câmara poderá ser sempre uma experiência intensa, onde se combina a criatividade e a vida humana, basta para isso ter querer e dispor de alguma inteligência, sem termos que recorrer a artificialidades de criar outros palcos, de usar enredos descabidos e efeitos especiais, para justificar números de visitantes, rentabilidades acrescidas ou empreendorismos deslocalizados. Querem saber porque é que certos museus e palácios têm tantos visitantes? Porque, simplesmente, os levam lá!
Esperamos, enfim, que a Casa-Museu Leal da Câmara sobreviva à desfaçatez humana, à incultura dos valores e à insensibilidade dos ignorantes e permaneça como uma atracção permanente, que funciona seis dias por semana, em horário conveniente e ajustado ao tempo e às pessoas, levando-nos a percorrer – como tem sido feito até aqui, por ideia e pretensão do Mestre Leal da Câmara e de Dona Júlia de Azevedo –, uma viagem inesquecível até a um passado que, ainda, nos pertence e que podemos testemunhar, como vivo e inteiramente nosso, onde as personagens, os labirintos e os significados das passagens nos surpreendem pela sua fertilidade criativa, pelo seu dramatismo crítico, pela sua espontaneidade satírica e pela sua magnifica graça.
Por último, aqui fica uma lembrança, uma opinião, um desejo, uma sugestão: visitem a Casa-Museu Leal da Câmara, na Rinchoa.
Casa-Museu Leal da Câmara
Calçada da Rinchoa
Rinchoa
335-312 Rio de Mouro, Sintra
Telf. 219164303
Dcul.museu.lcamara@cm-sintra.pt
Horário:
3ª a 6ª Feira – das 10:00 às 18:00 horas
Sábados e Domingos – das 12:00 às 18:00 horas
(Feriados – Encerrado
[1] Este texto biográfico assenta em dois escritos elaborados pelo autor e pelo Dr. Élvio Melim de Sousa, o primeiro, destinado ao catálogo da Exposição “Leal da Câmara e a Propaganda Republicana”, efectuada pelo pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, na Biblioteca-Museu, República Resistência, em 31 de Janeiro de 1996 e, o segundo, ao prospecto da Casa-Museu Leal da Câmara – “Leal da Câmara: Um Tempo e uma Palete de Cores”, editado pela Câmara Municipal de Sintra, em.
[2] Leal da Câmara. Miren Ustedes. Porto. Lello & Irmão, 1917. p. 10.
[3] Objectivamente, os resultados da intervenção portuguesa na Primeira Guerra Mundial, nas três frentes, atlântica, europeia e africana custou 7760 vidas e mais de 30000 baixas, entre feridos, desaparecidos, incapazes e prisioneiros.